O
texto abaixo é da autoria de Cecília Meireles.
Para
saber mais sobre o autor, favor consultar: http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp.
Boa
leitura!
HISTÓRIA
DE BEM-TE-VI
Com
estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que
passarinho é coisa só de jardim zoológico; e outras até acham que seja apenas
antiguidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto ainda existem
bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que
tenha uma árvore. Bom será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto
palácio verde podem morar muitos passarinhos.
Os
velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e
sabiás, maracanãs e "querejuás todos azuis de cor finíssima...". Nós
esquecemos tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é
leitura...
Mas
há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar.
E
é pena, pois com esse nome que tem — e que é a sua própria voz — devia estar em
todas as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, para no momento
oportuno anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e sob forma
tão inocente e agradável que ninguém se aborreceria.
O
que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a
observar na sua voz. O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos
vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a
articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: “...
te-vi!... te-vi", com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as
últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras achei natural que também
os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano.
Logo
a seguir, o mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão — como posso saber, com
a folhagem cerrada da mangueira? — animou-se a uma audácia maior Não quis saber
das duas sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali, invisível e
brincalhão: “... vi!... vi!... vi!..." o que me pareceu divertido, nesta
era do twist.
O
tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez
tenha voado com o seu team de futebol — que se não há de pensar de bem-te-vis
assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os lemas dos
seus brasões? Talvez tenha sido atacado por esses crioulos fortes que agora
saem do mato de repente e disparam sem razão nenhuma no primeiro indivíduo que
encontram.
Mas
hoje ouvi um bem-te-vi cantar E cantava assim: "Bem-bem-bem... te-vi!"
Pensei: "É uma nova escola poética que se eleva da mangueira!..."
Depois, o passarinho mudou. E fez: "Bem-te-te-te... vi!" Tornei a
refletir: "Deve estar estudando a sua cartilha... Estará
soletrando..." E o passarinho: "Bem-bem-bem... te-te-te... vi-vi-vi!"
Os
ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido
uma coisa assim! Mas as crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos
assuntos, ouviram, pensaram e disseram: "Que engraçado! Um bem-te-vi
gago!"
(É:
talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira...)
Que gostoso de ler, adoro esses textos de Cecília Meireles!
ResponderExcluirGostei muito.
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