O
texto abaixo é de autoria de Luiz Vilela.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.tirodeletra.com.br/biografia/LuizVilela.htm.
Boa leitura!
Boa leitura!
ZOIÚDA
Zoiúda...
Foi numa noite que ele conheceu Zoiúda. Foi numa noite — e nem poderia ser de
outra forma, já que, como as prostitutas e as estrelas, as lagartixas também
são seres da noite e só nela ou de preferência nela se mostram- que ele a viu
pela primeira vez.
Era
uma sexta-feira, ele tinha acabado de chegar da rua: quando se aproximou da
talha para tomar um copo d'água, lá estava a lagartixa, na parede, perto do
vitrô que dava para a área de serviço do apartamento onde morava, no décimo
andar. Era esbranquiçada, um pouco mais cabeçudinha que o comum e quase rabicó.
Mas foram os olhos, foram os olhos o que mais lhe chamou a atenção:
exorbitados, duas bolinhas brilhantes, parecendo duas miçangas. Observou-a mais
um pouco, acabou de tomar a água e, o corpo pedindo cama depois dos muitos
copos de chope, ele foi dormir.
Na
noite seguinte — de novo o bar, de novo as conversas e as bebidas, conversas e
bebidas que só serviam para matar o tempo e para matar dentro dele alguma coisa
que ele não sabia bem o quê, mas que sabia ser essencial —, ao chegar em casa,
acender a luz da cozinha e se aproximar da talha, viu de novo a lagartixa,
quase no mesmo lugar da véspera. Sim, era ela, ele não tinha a menor dúvida,
apesar de estar meio de porre: ali estava o toquinho de rabo, ali estavam os
olhos, os olhos desmedidos. "Zoiúda", disse, como que batizando-a.
Nela, nenhuma reação, a não ser, pareceu-lhe, estatelar mais ainda os já de si
estatelados olhos. E ficaram os dois novamente se olhando, ele pensando se
haveria naquela cabecinha algo como o pensamento, algo que...
Na
terceira noite, domingo, o mesmo bar e os mesmos amigos e as mesmas conversas e
bebidas, ele, num momento de quase convulsivo tédio ("isso mesmo", se
diria depois, "convulsivo tédio"), lembrou-se de Zoiúda, isolando-se
por alguns minutos do ambiente ao redor, um leve sorriso lhe aflorando aos
lábios. "O que foi?", perguntou a amiga que estava a seu lado, na
mesa. "Estou me lembrando da Zoiúda", ele respondeu. "Aquela dos
nossos tempos de faculdade?", perguntou a amiga. "Não", ele
disse, "é outra; essa eu acho que nem chegou a prestar o
vestibular...".
"Zoiúda,
Zoiudinha", disse em voz alta, depois de entrar em casa e acender a luz.
Como em quase todas as noites, foi direto à cozinha. Mas... Zoiúda não estava
lá. Não estava. Ficou meio decepcionado. Tinha certeza que... Chamou-a, uma
vez, duas, três, esperando que ela, ouvindo sua voz, aparecesse, vinda lá de
fora, da área ou até do paredão do prédio; mas ela não apareceu.
"Essas
mulheres... A gente não pode mesmo confiar..." Aliás aquela, ele pensou,
não só mulher não era, como talvez nem fêmea fosse, pois lera uma vez que nas
espécies animais o macho quase sempre tem a cabeça maior; além disso, a
cauda... A cauda, a cabeça e tinha ainda mais alguma coisa, alguma coisa que
ele até agora, de manhã, no carro, estava tentando lembrar, enquanto se dirigia
para a escola (uma escola pública num dos bairros mais longes da capital, onde
dava aulas de português para um bando de adolescentes desinteressados e
distraídos). Não, não lembrava; podia desistir. Mas também, diabo, que
importância tinha aquilo? Nenhuma, nenhuma importância.
"Apareceu
uma lagartixa no meu apartamento", contou, no intervalo. "Uma?",
o colega admirou-se. "Pois lá em casa, uma ocasião, tinha umas 300. Mas aí
eles me ensinaram um veneno, e eu pus: não ficou uma só para contar a história.
Se você quiser, eu posso te passar o nome”. "Eu tenho pavor",
confessou a colega, "eu tenho pavor de lagartixa. Se eu souber que tem uma
dentro de casa, eu simplesmente não durmo. Uma vez eu quase telefonei chamando
o Corpo de Bombeiros, vocês acreditam?". "Acho que eu sou meio
maluco", ele disse, "acho que eu sou mesmo meio maluco" — mas nenhum
dos dois estava mais prestando atenção nele.
À
noite, naquela plena segunda-feira, ele não saiu, substituindo o bar pela TV —
a mesmice pela idiotice, pensou. Sentou-se só de short (era outubro, um calorão
danado), acomodou-se na poltrona da sala, pegou o controle remoto e ligou a
televisão. Algum tempo depois, ao sentir sede, foi até a cozinha e...
"Zoiúda!", exclamou, com a alegria de um menino, "você está
aí!...". Estava; ali estava ela de novo, próximo à talha, e, como sempre,
permaneceu impassível — ou lá dentro, àquela hora, o minúsculo coração também
estaria batendo um pouquinho mais forte?...
O
certo é que, entre aparições e desaparições, entre o atento silêncio dela e as
peremptórias declarações dele — "Zoiúda, tirando minha mãe, você é a única
criatura que eu amo hoje no mundo" —, Zoiúda passou a ser para ele uma...
uma espécie de companhia. Afinal, num apartamento onde havia somente ele de
gente e onde, por dificuldade em criá-los, não havia cachorro, gato ou
passarinho, ela era uma presença, um ser vivo a quem ele podia dirigir a
palavra, embora não houvesse resposta — mas para que resposta? Não queria
resposta. Queria apenas falar. Apenas isso. "Né, Zoiúda?”
E
assim, como nas histórias antigas, foram se passando os dias. Até que, tendo de
fazer uma viagem e se ausentar por uma semana, ao voltar, ele não viu mais
Zoiúda. Partira para outras bandas? Morrera? Ele não sabia. O fato é que não a
viu mais, em nenhuma noite.
Sentiu
falta dela? Imagine; imagine um homem sentir falta de uma lagartixa... Claro
que ele não sentiu. Mas sentiu — tinha de admitir — que aquele apartamento
ficara um pouco mais vazio e aqueles fins-de-noite um pouco mais tristes.
Texto
extraído do caderno “Mais!”, de 24-11-2002, publicado pelo jornal “Folha de São
Paulo” – São Paulo, pág. 12.
As vezes até uma lagartixa pode ser uma boa companhia. Gostei da história, muito bonita!
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