O
texto abaixo é de autoria de Cecília Meireles.
Para
maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://pensador.uol.com.br/autor/cecilia_meireles/biografia/.
Boa
leitura!
EDMUNDO,
O CÉPTICO
Naquele
tempo, nós não sabíamos o que fosse cepticismo. Mas Edmundo era céptico. As
pessoas aborreciam-se e chamavam-no de teimoso. Era uma grande injustiça e uma
definição errada.
Ele
queria quebrar com os dentes os caroços de ameixa, para chupar um melzinho que
há lá dentro. As pessoas diziam-lhe que os caroços eram mais duros que os seus
dentes. Ele quebrou os dentes com a verificação. Mas verificou. E nós todos
aprendemos à sua custa. (O cepticismo também tem o seu valor!)
Disseram-lhe
que, mergulhando de cabeça na pipa d’água do quintal, podia morrer afogado. Não
se assustou com a ideia da morte: queria saber é se lhe diziam a verdade. E só
não morreu porque o jardineiro andava perto.
Na
lição de catecismo, quando lhe disseram que os sábios desprezam os bens deste
mundo, ele perguntou lá do fundo da sala: “E o rei Salomão?” Foi preciso a
professora fazer uma conferência sobre o assunto; e ele não saiu convencido.
Dizia: “Só vendo.” E em certas ocasiões, depois de lhe mostrarem tudo o que
queria ver, ainda duvidava. “Talvez eu não tenha visto direito. Eles sempre
atrapalham.” (Eles eram os adultos.)
Edmundo
foi aluno muito difícil. Até os colegas perdiam a paciência com as suas
dúvidas. Alguém devia ter tentado enganá-lo, um dia, para que ele assim
desconfiasse de tudo e de todos. Mas de si, não; pois foi a primeira pessoa que
me disse estar a ponto de inventar o moto contínuo, invenção que naquele tempo
andava muito em moda, mais ou menos como, hoje, as aventuras espaciais.
Edmundo
estava sempre em guarda contra os adultos: eram os nossos permanentes adversários.
Só diziam mentiras. Tinham a força ao seu dispor (representada por várias
formas de agressão, da palmada ao quarto escuro, passando por várias etapas
muito variadas). Edmundo reconhecia a sua inutilidade de lutar; mas tinha o
brio de não se deixar vencer facilmente.
Numa
festa de aniversário, apareceu, entre números de piano e canto (ah! delícias
dos saraus de outrora!), apareceu um mágico com a sua cartola, o seu lenço,
bigodes retorcidos e flor na lapela. Nenhum de nós se importaria muito com a
verdade: era tão engraçado ver saírem cinquenta fitas de dentro de uma só… e o
copo d’água ficar cheio de vinho…
Edmundo
resistiu um pouco. Depois, achou que todos estávamos ficando bobos demais.
Disse: “Eu não acredito!” Foi mexer no arsenal do mágico e não pudemos ver mais
as moedas entrarem por um ouvido e saírem pelo outro, nem da cartola vazia
debandar um pombo voando… (Edmundo estragava tudo. Edmundo não admitia a
mentira. Edmundo morreu cedo. E quem sabe, meu Deus, com que verdades?)
Texto
extraído do livro “Quadrante 2”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1962, pág.
122.
Muito bom ..Edmundo pagava pra ver kk
ResponderExcluirEsses textos de Cecília Meireles são deliciosos ! Amei ler!
ResponderExcluir