O
conto abaixo é de autoria de Orígenes Lessa.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.academia.org.br/academicos/origenes-lessa/biografia.
Boa
leitura!
AS
CORES
Maria
Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Em
seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas palavras eram
a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia.
Esboçou um sorriso... Sabia estar só na casa que conhecia tão bem, em seus
mínimos detalhes, casa grande de vários quartos e salas onde se movia
livremente, as mãos olhando por ela, o passo calmo, firme e silencioso, casa
cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que a imagem e a cor pareciam a
nota mais viva das outras vidas de ilimitados horizontes.
Como
seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo
nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante
de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas
para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com
inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros
assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser
claros. Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual
ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos
amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes
serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o
negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição
social? Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? É branco?
Raramente se enganava agora. Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes, pelo
olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas
vezes – e aquilo a perturbava – encontrasse também a cor social mais nobre no
trato das panelas e na limpeza da casa. Nas paredes, porém, nos objetos, já não
sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de
superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a
abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas
estatuetas, vinha sempre conjugado à ideia de beleza, que ela sabia haver numa
sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa polonaise de Chopin, na voz de uma
cantora, num gesto de ternura humana.
Que
seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato
conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que
era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em
comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos
lábios (seriam os seus vermelhos também e convidariam ao beijo, como nos
anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do
centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona
que ficava à direita e onde se afundava feliz para ouvir novelas? Que seria a
cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora
desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que
tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam?
E que seria ver? Era o sentido certamente que permitia evitar as pancadas, os
tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura
de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era o sentido que permitia
encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito,
variedade do belo e de outras palavras sempre ouvidas e empregadas e que bem
compreendia, porque o podia sentir na voz e no caráter das pessoas, nas
atitudes e nos gestos humanos, no Rêve d’Amour, que executava ao piano, e em
muita coisa mais...
Ver
era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera
e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao
seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos,
frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos,
mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada...
Claro
que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e seria
capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor... Se lhe
pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando
tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de
tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que para
todos os familiares era como se a visse também.
—
Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz... Dizia aquilo um pouco para que não
dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão.
Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de
seu estado. Seria mais feliz se pudesse estar sempre sozinha como agora,
movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações
repentinas de pena, quando se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do
cotidiano labor.
—
Machucou, meu bem?
Doía
mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família assustada e do
remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer que
não fora nada.
E
quando insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática
a recusa.
—
Maria Alice é modesta, odeia exibições...
Outro
era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no mundo
dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente... Mas como a remordia a
admiração piedosa dos amigos... As palmas e os louvores vinham sempre cheios de
pena e havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto
infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação maravilhada de
alguns:
—
Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim...
Nunca
Maria Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas para os que não a
avisavam de haver uma cadeira na frente ou não a preveniam contra a posição do
abajur.
—
Eu sei... eu já sei...
E
como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na descrição
das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém-chegado, antes que
se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma sutilezas. Sem que lhe
dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou feio. E antes que qualquer
outro, lia-lhe o caráter e o temperamento. Àqueles pequeninos milagres de sua
intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por
isso lhe falavam sempre em termos de quem via para quem via. E nesses termos
lhes falava também.
O
livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto.
Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgara
que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade,
raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia
facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso
ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela maneira de agir o
sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes. O seu, de humildes e
resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da
cor. — Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice...
Maria
Alice dava.
—
Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria
Alice aconselhava.
Ninguém
conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a bolsa que ia
melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava. Assim como ninguém
sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos
e coisas. O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se
confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore.
Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul.
Que seria o céu? Um lugar, com certeza. Tinha mil e uma ideias sobre o céu.
Deus, anjos, glória divina, bem-aventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas
sabia haver um outro, material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que
associava à ideia do veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que
o céu era azul.
Aquelas
associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande
mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a substâncias ásperas ou
duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve e
flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava inquieto, com um sopro
vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um vestido de baile, mas era ao
mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade.
E
agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá
conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos
mistérios para eles tão claros da música eterna. Lembrava-se da ternura daquela
voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros e
suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas
bocas se encontrado... De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente
no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta
de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a
retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual
tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara horrorizado:
—
Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca!
Mulato
era cor.
Estava
longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual
nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar
sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de
cores... Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz
ia contar-lhe o filme todo, com certeza. O rumor – passos e vozes – encheu a
casa.
—
Tudo azul? – perguntou Ana Beatriz, entrando na sala.
—
Tudo azul – respondeu Maria Alice.
Que lindo e comovente conto! Amei ler.
ResponderExcluir