O
texto abaixo é de autoria de Marcos Rey.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: www.ebiografia.com/marcos_rey/.
Boa
leitura!
O
CORAÇÃO ROUBADO
Eu
cursava o último ano do primário e como já estava com o diplominha garantido,
meu pai me deu um presente muito cobiçado: O coração, famoso livro do escritor
italiano Edmondo de Amicis, best-seller mundial do gênero infanto-juvenil.
Na
página de abertura lá estava a dedicatória do velho, com sua inconfundível
letra esparramada. Como todos os garotos da época, apaixonei-me por aquela obra-prima
e tanto que a levava ao grupo escolar da Barra Funda para reler trechos no
recreio.
Justamente
no último dia de aula, o das despedidas, depois da festinha de formatura,
voltei para a classe a fim de reunir meus cadernos e objetos escolares, antes
do adeus. Mas onde estava O coração? Onde? Desaparecera. Tremendo choque. Algum
colega na certa o furtara. Não teria coragem de aparecer em casa sem ele. Ia
informar à diretoria quando, passando pelas carteiras, vi a lombada do livro,
bem escondido sob uma pasta escolar. Mas... era
lá que se sentava o Plínio, não era? Plínio, o primeiro da classe em aplicação
e comportamento, o exemplo para todos nós. Inclusive o mais limpinho, o mais
bem penteadinho, o mais tudo. Confesso, hesitei.
Desmascarar
um ídolo? Podia ser até que não acreditassem em mim. Muitos invejavam o Plínio.
Peguei o exemplar e o guardei em minha pasta. Caladão. Sem revelar a ninguém o
acontecido. Lembro do abraço que Plínio me deu à saída. Parecia estar segurando
as lágrimas. Balbuciou algumas palavras emocionadas.
Mal
pude retribuir, meus braços se recusavam a apertar o cínico.
Chegando
em casa minha mãe estranhou que eu não estivesse muito feliz. Já preocupado com
o ginásio? Não, eu amargava minha primeira decepção. Afinal, Plínio era um
colega que devíamos imitar pela vida afora, como costumava dizer a professora.
Seria mais difícil sobreviver sem o seu exemplo. Por outro lado, considerava se
não errara em não delatá-lo. “Vocês estão
todos enganados, e a senhora também, sobre o caráter do Plínio. Ele roubou meu
livro. E depois ainda foi me abraçar...”
Curioso,
a decepção prolongou-se ao livro de Amicis, verdadeira vitrina de qualidades
morais dos alunos de uma classe de escola primária. A história de um ano letivo
coroado de belos gestos. Quem sabe o autor não conhecesse a fundo seus próprios
personagens. Um ingênuo como a nossa professora. Esqueci-o.
Passados
muitos anos reconheci o retrato de Plínio num jornal. Advogado, fazia rápida
carreira na Justiça.
Recebia
cumprimentos. Brrr. Magistrado de futuro o tal que furtara meu presente de fim
de ano! Que toldara muito cedo minha crença na humanidade! Decidi falar a verdade.
Caso alguém se referisse a ele, o que passou a acontecer, eu garantia que se
tratava de um ladrão. Se roubava já no curso primário, imaginem agora... Sempre
que o rumo de uma conversa levava às grandes decepções, aos enganos de falsas
amizades, eu contava, a quem quisesse ouvir, o episódio do embusteiro do Grupo
Escolar Conselheiro Antônio Prado, em breve desembargador ou secretário da
Justiça.
–
Não piche assim o homem – advertiu-me minha mulher.
–
Por que não? É um ladrão!
–
Mas quando pegou seu livro era criança.
– O
menino é o pai do homem – rebatia vigorosamente.
Plínio
fixara-se como um marco para mim. Toda vez que o procedimento de alguém me
surpreendia, a face oculta de uma pessoa era revelada, lembrava-me irremediavelmente
dele. Limpinho. Penteadinho. E com a mão de gato se apoderando de meu livro.
Certa
vez tomaram a sua defesa:
–
Plínio, um ladrão? Calúnia! Retire-se da minha presença!
Quando
o desembargador Plínio já estava aposentado, mudei-me para meu endereço atual.
Durante
a mudança alguns livros despencaram de uma estante improvisada. Um deles O
coração, de Amicis. Saudades. Havia quantos anos não o abria?
Quarenta
ou mais? Lembrei da dedicatória de meu falecido pai. Ele tinha boa letra.
Procurei-a na página de rosto. Não a encontrei. Teria a tinta se apagado? Na página
seguinte havia uma dedicatória. Mas não reconheci a caligrafia paterna. “Ao meu
querido filho Plínio, com todo amor e carinho de seu pai.”
Muito bom esse texto.
ResponderExcluirAmei ler!
ResponderExcluirEra ele o ladrão! É para refletir...