O texto abaixo é de autoria de Paulo Mendes Campos.
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Boa leitura!
O CEGO DE IPANEMA
Há bastante tempo que não o vejo e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no ato, como um instrumento, a captar os ruídos, os perigos, as ameaças da Terra. Os cegos, habitantes do mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo nossas incertezas e perplexidades. Sua bengala bate na calçada, com um barulho seco e compassado, investigando o mundo geométrico. A cidade é um vasto diagrama, da qual ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvairio. Sua sobrevivência é um cálculo.
Ele parava ali na esquina, inclinava sua cabeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos dessa selva de asfalto. Se da rua viesse o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem. Ao chocar-se contra o obstáculo, seu corpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e permanecia por alguns momentos em plena rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.
Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. Como profissão, por estranho que seja, faz chaves e conserta fechaduras, chaves perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem do botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam afavelmente, os porteiros conversam com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que fosse completamente cego.
― Já reparou como ele é elegante?
Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos esvaziados de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas compunham uma figura misteriosamente elegante, uma elegância hostil, uma elegância que nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.
Às vezes, revolta-se perigosamente contra seu fado. Há alguns anos, saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. Parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto onde se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquanto o cego vibrava sua bengala, gritando: “Está pensando que você é o dono da rua?”
Outra vez, eu o vi num momento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos percorreram o para-lamas, o painel, os faróis e os frisos. Seu rosto se iluminou, deslumbrado, como se seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira. O mar de encontro aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.
E não me esqueço também de um domingo quando ele estava saindo do boteco. Sol morno e pesado. Meu amigo cego estava completamente bêbado. Encostava-se à parede em uma tentativa improvável de equilibrar-se. Ao contrário de outros homens que se embriagavam aos domingos, e cujos rostos ficavam irônicos e ferozes, ele mantinha uma expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica. O cego de Ipanema representava, naquele momento, todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre a Terra. A Poesia servia-se dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam em meio à turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado, como qualquer um de nós. A agressividade, que lhe emprestava segurança, desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com seu sol opaco e furioso. Naquele instante, ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, sua bengala espetava o chão, evitando a queda. Volta assustado à certeza da parede, para recomeçar, momentos depois, a tentativa desesperada de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no Caos.
Fonte: https://www.deficienciavisual.pt/r-O%20Cego_de_Ipanema-Paulo_Mendes_Campos.htm.
Amei ler essa crônica! Que linda obra!
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