O texto abaixo é de autoria de Moacyr Scliar.
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Boa leitura!
PAZ E GUERRA
Eu estava atrasado para a guerra; tive de tomar um táxi. Uma contrariedade: com o recente aumento do preço da corrida, aquilo era uma despesa imprevista e inoportuna, um abalo em meu orçamento. Contudo, cheguei justo a tempo de marcar o ponto, evitando assim transtornos maiores. A fila junto ao relógio de ponto era grande: eu não era o único retardatário. Ali estava o Walter, meu colega de trincheira, resmungando: também ele tivera de tomar um táxi. Éramos vizinhos e tínhamos entrado na guerra quase ao mesmo tempo. Na segunda quinta-feira de cada mês tomávamos o ônibus na esquina de nossa rua, para participar nas ações bélicas.
Estou farto deste negócio, disse Walter. Eu também, respondi. Suspirando, batemos o ponto e nos dirigimos ao barracão da intendência, onde estava instalado, provisoriamente (mas isso há mais de quinze anos), o vestiário. Atrasados, hoje? — perguntou o rapazinho que tomava conta do vestiário. Não respondemos. Recebemos as chaves dos nossos armários. Rapidamente trocamos de roupa, vestindo nossos velhos uniformes de campanha; apanhamos os fuzis e a munição (vinte cartuchos) e nos dirigimos para a linha de combate.
O conflito bélico tinha como cenário um descampado nos arredores da cidade. O campo de batalha estava cercado por uma cerca de arame farpado com tabuletas: Guerra, afaste-se. Advertência desnecessária: pouca gente vinha ali, àquele local de bucólicas chácaras e sítios.
Nós, os soldados, ocupávamos uma trincheira de cerca de dois quilômetros de extensão. O inimigo, que nunca víamos, estava a cerca de um quilômetro, também entrincheirado. O solo, entre as duas trincheiras, estava juncado de destroços: blindados e tanques destruídos misturavam-se a ossadas de cavalos, recordando um tempo em que a luta havia sido feroz. Agora o conflito tinha entrado em sua fase estável — de manutenção, nas palavras do nosso comandante. Combates não mais ocorriam. A única recomendação que nos faziam era não sair da trincheira. Um problema, para mim: meu filho menor queria uma cápsula vazia de obus, que eu não tinha como conseguir. O garoto reclamava; eu nada podia fazer.
Descemos para a trincheira, Walter e eu. O lugar não era de todo desconfortável. Tínhamos mesas, cadeiras, um pequeno fogão, utensílios de cozinha, sem falar num aparelho de som e uma TV portátil. Propus a Walter um joguinho de cartas. Depois, ele disse. Examinava seu fuzil com testa franzida e ar de desgosto: esta porcaria não funciona mais, sentenciou. Ora, eu disse, tem mais de quinze anos, já deu o que tinha que dar. E ofereci-lhe minha arma: não pretendia disparar tiro nenhum. Naquele momento ouviu-se um estampido e o silvo de uma bala sobre nossas cabeças. Essa passou perto, eu disse. Esses idiotas, resmungou Walter, um dia vão acabar ferindo alguém. Pegou minha arma, pôs-se de pé e deu dois tiros para o ar. Que lhes sirva de advertência, bradou, e tornou a se sentar. Um servente apareceu, com um telefone sem fio: sua esposa, seu Walter. Mas que diabo, exclamou ele, nem aqui essa mulher me deixa em paz. Pegou o telefone:
– Alô! Sim, sou eu. Estou bem. Claro que estou bem. Não, não me aconteceu nada, já te disse que estou bem. Eu sei que você fica nervosa, mas não há motivo. Está tudo bem, estou bem abrigado, não está chovendo. Ouviu? Tudo bem. Não precisa se desculpar. Eu compreendo. Um beijo.
Que mulher chata, disse, devolvendo o telefone ao servente. Eu não disse nada. Também tinha um problema com minha mulher, só que diferente: ela não acreditava que estivéssemos em guerra. Suspeitava que eu passava o dia num motel. Eu gostaria de lhe explicar que guerra era aquela, mas a verdade é que não sabia. Ninguém sabia. Era uma coisa muito confusa; tanto que havia uma comissão estudando a situação do conflito. O presidente dessa comissão às vezes vinha nos visitar e se queixava do automóvel que tinham lhe dado para as viagens de inspeção: uma lata velha, segundo ele. De fato, era um carro bem antigo. Não o trocavam por medida de economia. A manhã transcorreu serena; um dos nossos deu um tiro, os do outro lado responderam, e foi tudo. Ao meio-dia serviram o almoço. Salada verde, carne assada, arroz à grega; de sobremesa um pudim insosso. Isto aqui está cada vez pior, queixou-se Walter. O garçom perguntou-lhe se ele achava que estava num restaurante ou o quê. Walter não respondeu.
Deitamos para a sesta e dormimos tranquilamente. Quando acordamos, estava anoitecendo. Acho que vou indo, eu disse a Walter. Ele não podia me acompanhar: estava de plantão naquela noite. Fui ao vestiário, troquei de roupa. Como foi a guerra, perguntou o rapazinho saliente. Bem, respondi, muito bem. Passei na administração, recebi meu cheque de um funcionário de cara azeda, assinei as três vias de um recibo. E cheguei no ponto de ônibus bem na hora.
Em casa, minha mulher me esperava em sua malha de ginástica. Estou pronta, disse, seca. Fui até o quarto, vesti o abrigo esportivo. Dirigimo-nos ao estúdio, montamos nas bicicletas ergométricas. Onde estávamos, mesmo? — perguntei. Você nunca sabe, respondeu, num tom de censura. Apanhou o mapa, estudou-o um instante e disse:
– Bisceglie, na costa do Adriático.
Pusemo-nos a pedalar furiosamente; duas horas depois, quando paramos, estávamos perto de Molfetta, ainda na costa adriática. Contamos fazer a Itália em um ano. Depois, veremos. Eu não gosto de planos a longo prazo; por causa da guerra, naturalmente, mas sobretudo porque a incógnita do futuro é para mim motivo de permanente excitação.
Fonte: https://contobrasileiro.com.br/paz-e-guerra-conto-de-moacyr-scliar/.
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