O texto abaixo é de autoria de Murilo Rubião.
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Boa leitura!
OS COMENSAIS
E naqueles dias os homens buscarão a morte e não a acharão; desejarão morrer e a morte fugirá deles.
(Apocalipse, IX, 6)
Desde o primeiro contato Jadon admitiu a precariedade das suas relações com os companheiros de refeitório. E a atitude de permanente alheamento que assumiam na sua presença, ele a recebeu como possível advertência. Sem manifestar irritação ante o isolamento a que o constrangiam, conjeturava se eles não acabariam por se tornar mais expansivos.
Era-lhe penoso, entretanto, encontrá-los sempre na mesma posição, a aparentar indiferença pela comida que lhes serviam e por tudo que se passava ao redor. Enquanto Jadon almoçava, permaneciam quietos, os braços caídos, os olhos baixos. Ao jantar, lá estavam nos mesmos lugares, diante das compridas mesas espalhadas pelo salão. Assentavam-se em grupos de vinte, deixando livres as cabeceiras. Menos uma, justamente a da mesa central, onde ficava um velho alto e pálido. Este, a exemplo dos demais, nada comia, mantendo-se numa postura de rígida abstração, como a exigir que respeitassem o seu recolhimento. Malgrado a sua recusa em se alimentar, silenciosos criados substituíam continuamente os pratos ainda cheios.
A princípio Jadon espreitava-os discretamente, na esperança de surpreendê-los trocando olhares ou segredos entre si. Logo verificou a inutilidade do seu propósito: jamais desviavam os olhos da toalha e prosseguiam com os lábios cerrados. Experimentou o recurso de dirigir-se bruscamente aos vizinhos e desapontou-se por não conseguir despertar-lhes a atenção. Mantinham-se impassíveis, mesmo quando as frases eram ásperas ou acompanhadas de gritos.
Após essa experiência, seguiu-se um período em que Jadon desistiu de penetrar na intimidade daqueles cavalheiros taciturnos que, apesar de manifestarem evidente desinteresse pelos alimentos, apresentavam-se saudáveis e tranquilos. Essa observação seria o suficiente para convencê-lo de que os comensais evitavam comer somente durante a sua permanência no recinto. Por certo aguardavam a sua saída para se atirarem avidamente às especialidades da casa. Nesse momento talvez se estendessem em alegres diálogos, aos quais não faltariam desprimorosas alusões à sua pessoa, cuja presença deveria ser bastante desagradável para todos.
Que se danassem, resmungava, esforçando-se por ignorar o procedimento descortês dos que a li tomavam refeições. E concentrava-se em saborear a excelente comida que lhe era servida e sempre renovada sem que isso envolvesse qualquer sugestão ou pedido seu. Nos primeiros tempos achava engraçado acompanhar os movimentos dos garçons que, mesmo vendo-o de pé, pronto a retirar-se, vinham com novas travessas para substituir as que estavam na sua frente.
Contudo desagradava-lhe o silêncio reinante, o segregamento que lhe impunham. Ultrapassado o limite suportável do aborrecimento, desinibia-se nos vizinhos mais próximos, dando-lhes pontapés por debaixo da mesa, à espera de que reagissem ou retrucassem com um palavrão. Em nenhuma oportunidade percebeu neles o menor sinal de constrangimento.
Era também por sadismo que se entretinha às vezes em mortificá-los, calculando o esforço que despenderiam para ignorar a sua impertinência. Numa das ocasiões em que se divertia atirando bolotas de pão no rosto deles, sentiu-se encabulado por ter atingido um senhor idoso que até a véspera não participava do grupo. Mesmo considerando a falta de intimidade com os presentes, reconhecia ter sido tacitamente aceito como companheiro e assim deveria evitar brincadeiras com desconhecidos. Desviou contrariado o olhar para o fundo do salão, onde algo de anormal o surpreendeu: em sítios diversos, encontravam-se pessoas cujas fisionomias lhe eram inteiramente estranhas. A descoberta deixou-o intrigado. Desde que passara a frequentar aquele local, as mesas tinham todos os assentos tomados por antigos fregueses que nunca se ausentavam dos lugares habituais nem os permutavam entre si. Esquadrinhou os semblantes, examinando com atenção se alguém desaparecera para abrir vagas aos novatos e não constatou qualquer ausência. Contava e recontava os ocupantes das mesas, sem deparar mais de vinte em cada, à exceção, naturalmente, daquela em que se postava o pobre velho.
Por outro lado, a área do refeitório, embora extensa, não comportava acréscimos de localidades que permitissem acolher novos frequentadores. E estes, para tornar mais confusa a situação, não se apresentavam juntos, mas entremeados aos veteranos. Havia ainda um detalhe perturbador: jamais ocupavam o seu lugar, mesmo que chegasse com grande atraso.
Daí por diante, Jadon permaneceria bem atento ao que se passava nas imediações e frequentemente surpreendia-se dando com os olhos em indivíduos que dias atrás não partilhavam da mesma mesa. À medida que aumentava sua perplexidade, e não conseguia explicar como faziam os recém-chegados para acomodar-se entre os demais, do seu íntimo emergia a desconfiança de que tudo aquilo poderia ser propositado — um recurso sombrio de intrigá-lo, quebrar-lhe a resistência pelo mistério, e afastá-lo definitivamente daquele local.
Se essa era a intenção real deles — dizia consigo mesmo —, estavam enganados. Apreciava muito o vinho e a comida da casa para pensar em trocá-la por outro restaurante.
Também não se esquivaria à provocação. Iria até a mais franca hostilidade, pois a sua permanência a li dependia de uma ação firme, que obrigasse o adversário a recuar em seus escusos desígnios. Na ocupação das mesas havia uma fraude a ser desmoralizada e nessa tarefa se concentrou.
No dia imediato, animado pela perspectiva de acionar o esquema traçado, chegou bem cedo ao refeitório. Desapontou-se logo à entrada: encontravam-se todos em seus respectivos lugares.
O desapontamento não desencorajou Jadon, que, nas manhãs seguintes, foi encurtando gradativamente o horário de chegada. E por mais que o encurtasse, seria sempre o último a tomar assento entre eles.
Durante algum tempo insistiria na decisão de desvendar, a todo custo, a maneira pela qual se processava o aumento progressivo de comensais sem que se multiplicasse o número de cadeiras. No final, cansou-se. Além de lhe desagradar o almoço em horas tão matinais, convencera-se da necessidade de mudar a estratégia. Já que não lhe permitiam ser o primeiro a chegar, decidiu obrigá-los a sair antes dele ou se submeterem ao seu capricho de vê-los ao menos uma vez jantar na sua frente.
Evitando incorrer novamente na leviandade de subestimar a teimosia dos circunstantes, preparou-se para executar programas ociosos. Com a ajuda de jornais, revistas e livros emendava as duas refeições. Se com o passar das horas lhe vinha o cansaço ou o tédio pela leitura, levantava-se, passeava pela sala ou ia até a rua, voltando logo.
No curso da noite, mal contendo o sono, aguardava em vão que os parceiros tomassem a iniciativa de se alimentar. Quando entrevia neles a determinação de permanecerem nos seus postos, indiferentes à comida, dava-se por vencido e se dispunha a regressar a casa. Da soleira da porta, voltava a cabeça para trás e estremecia de ódio ante uma cena terrivelmente familiar: os criados, indo e vindo como autômatos; os comensais, de ombros curvados, a esconderem o olhar.
Não tardou a compenetrar-se de que cometera outro erro de previsão. Nem por isso mostrava-se convencido da esterilidade da luta que enfrentava. É que ainda o amparava um vacilante otimismo. Somente ao verificar que não mais experimentava prazer em degustar as bebidas e saborear a comida, constatou que tinha pela frente uma única alternativa: a violência. A ela recorreu.
Nos dias subsequentes, a fisionomia endurecida, passadas largas, irrompia pelo salão. No caminho, distribuía insultos e murros. E mesmo sem arrancar um gesto de reação ou repulsa das pessoas agredidas, os excessos refrescavam-lhe a mente.
Das arbitrariedades também se cansou. Esgotara os recursos disponíveis para romper a opressiva indiferença dos comensais, e falhara. Só lhe restava agora buscar um restaurante no extremo oposto da cidade.
Foi uma resolução demorada e sofrida: naquele almoço faria a sua despedida. E a desejava com todos os requintes do seu ritual de agressão.
Desde a entrada veio agredindo e destratando um por um os presentes.
Cumpria com calculada lentidão a tarefa, escolhendo bem o alvo, pronunciando com sádica clareza as sílabas dos palavrões. De súbito imobilizou-se, abaixando o punho prestes a desferir violento golpe.
Diante dele estava uma jovem que possivelmente não ultrapassara os dezesseis anos. O olhar fixo no semblante delicado da adolescente, percebeu que um sentimento antigo lhe retornava.
Percorria com os olhos o corpo de linhas perfeitas, os cabelos castanhos, entremeados de fios dourados, compondo-se em longas tranças. Quase nada mudara nela. Apenas o rosto lhe parecia mais pálido, talvez faltasse o sorriso que trinta anos atrás era constante nos seus lábios.
— Hebe, Hebe, minha flor! Que alegria! — gritou, as palavras tensas, numa voz repentinamente enrouquecida.
Quis falar da sua emoção e conteve-se, chocado com a insensibilidade dela ante a carinhosa acolhida que ele lhe proporcionava. Pálpebras cerradas, os braços pendentes, Hebe parecia refugiar-se na mesma solidão dos outros.
Constrangido, a buscar uma saída para o seu embaraço, Jadon teve a suficiente isenção de relevar o procedimento da sua primeira namorada. À distância, o largo intervalo entre o último encontro e agora. O silêncio, ele que prometera escrever longas cartas.
Encaminhou-se vagarosamente para o seu lugar. Um aroma distante, vindo de um passeio matinal, o envolvia. Mantinha os olhos presos à figura grácil de Hebe e a contemplava com igual encantamento de três decênios passados. A mesma beleza acanhada de moça do interior, o mesmo vestido de bolinhas azuis.
Jadon era moço, se bem que mais velho do que ela. Naquele dia se despediam. Ele se transferia, com os pais, para uma cidade maior e Hebe acompanhava-o até a pequenina estação, distante um quilômetro. O rapaz carregava uma mala de papelão fingindo couro e os dois caminhavam preguiçosamente porque havia tempo.
Caminho afora, naquela manhã friorenta de junho, o orvalho a molhar o capim, enquanto um tímido sol aumentava o brilho das gotículas depositadas nas folhas do arvoredo, eles sentiam o universo parar ao contato do amor.
A espaços, detinham-se, Jadon depositava a mala no chão, beijavam-se.
Outras vezes ela corria ao redor do namorado ou se afastava, para de longe jogar-lhe beijos com a ponta dos dedos. Brincalhona, a alegria e a tristeza se revezando nos seus olhos, não poderia suspeitar que aquele encontro seria o último.
Ele prometera voltar, mas em breve esqueceria a promessa, rendido ao alumbramento da grande cidade, a fêmeas mais adestradas para o amor.
O lugar de Hebe no salão ficava distante e Jadon não conseguia divisar-lhe o rosto, sempre escondido pela cabeça de algum comensal. Por sua vez ela se despreocupava em ser vista, forçando-o a levantar-se frequentemente.
Logo verificou que pouco lhe adiantaria ficar de pé ou assentado. Qual fosse a sua posição, o desinteresse da moça não se alterava. Ressentido, preferiu acreditar que exagerava as proporções daquele namoro esquecido no tempo e que tolamente tentara reatar. O mais sensato era afastar-se definitivamente dali, conforme sua decisão anterior.
Seguia em direção à porta de saída, quando fez menção de parar defronte da jovem e dizer-lhe algo. Refreou a tempo o impulso, estugando o passo.
Bem antes de chegar em casa já se arrependera e esgotou o resto da tarde entre aceitar e repelir o desejo de retornar ao refeitório. Ao vencer, por fim, as suas próprias contradições, abeirava-se a noite.
Nas mãos levava rosas e foi direto à mesa de Hebe. As primeiras frases lhe escaparam tímidas, balbuciadas, até que mais seguro de si reencontrou o pequeno discurso decorado. Em breve julgaria improvisar, porém as palavras se nutriam de velhas ressonâncias. Quando notou que as flores jaziam intocadas sobre a toalha, perturbou-se e o desapontamento espalhou-se pela sua face. A custo prendeu um soluço, prenuncio de um desespero prestes a desencadear-se. Com apaixonada violência tentou ainda subtrair Hebe à sua dolorosa clausura, mas aos poucos a sua voz perdia a segurança, o calor. Levou a mão à boca, sem conseguir evitar o pranto, um pranto manso. Faltando-lhe ânimo para somar o que lhe restava de amor-próprio, voltou-se humilde para trás, à espera de uníssona gargalhada de uma plateia que devia estar atenta a seu ridículo procedimento. Apenas o ar pesado, o silêncio.
Foi para seu lugar e não tocou na comida. Pôs-se a beber descontroladamente e no álcool diluiu a humilhação. Vagava em triste euforia, retornava ao rapaz sentimental que tinha sido. Por entre pensamentos soltos e imagens da infância, recuou até o velho casarão colonial da fazenda de seus pais. O rio, as lavadeiras — o mistério da puberdade sendo decifrado —, o trem de ferro a acender a imaginação dele e dos companheiros, levando-os a lugares distantes. As reminiscências se dispersavam em retalhos e nem sempre traziam o retrato de Hebe. Porém nos melhores lá estavam as suas tranças, os olhos ligeiramente estrábicos.
Bebera demasiado. E encorajado pela embriaguez tentou levantar-se para colher Hebe nos braços, arrancar-lhe o perdão. O corpo recusou-se a obedecer-lhe. Caiu pesadamente na cadeira e, debruçado sobre a mesa, veio-lhe um sono entorpecedor.
Acordou madrugada alta, ignorando o tempo que dormira. Mal desperto, seus olhos se chocaram com um espetáculo que antes não lhe parecera tão repugnante: diante dele encontravam-se os comensais na mesma posição em que os deixara ao adormecer, enquanto os garçons, maquinalmente, trocavam os pratos, como se o jantar tivesse iniciado há pouco. Um pressentimento terrível perpassou-lhe pela mente e num lampejo de súbita lucidez compreendeu que todos moravam no refeitório. Por isso jamais conseguira chegar antes ou sair depois deles. Essa tardia revelação estarreceu-o. Sabia que tinha pela frente a última oportunidade de escapar dali. Levantou-se de um salto e ao passar por Hebe tentou levá-la consigo:
— Vamos, Hebe, vamos — gritava, puxando-a pelos braços que não ofereciam resistência, transformados em uma coisa gelatinosa. O corpo grudara-se no assento. Não esmorecia, apesar de sentir-se incapaz de removê-la. No momento em que mais se empenhava em arrastá-la, um gesto brusco seu lançou para trás a cabeça de Hebe e as suas pálpebras, movendo-se como se pertencessem a uma boneca de massa, descerraram-se. Largou-a, aterrorizado. Teve ímpeto de correr e controlou-se. Foi-se afastando de costas, os olhos siderados, em direção ao corredor. No meio do caminho, ocorreu-lhe que precisava liquidar seu débito com a casa.
— Diabo! Onde seria a gerência? — perguntou a si mesmo, achando estranho não ter-se preocupado até aquele dia em saber da sua localização. — Se nunca lhe tinham cobrado, por que não tomara a iniciativa de pagar as despesas?
A pressa levou-o a afastar essa e outras indagações. Tratou de enfiar-se por uma dependência, na qual jamais entrara, calculando que a li acharia o gerente ou a pessoa encarregada das cobranças. Deparou com um cômodo sem janelas, as luzes acesas, vazio. Proferiu uma palavra obscena, decidindo-se por enviar um cheque pelo correio, mesmo desconhecendo o montante da dívida.
Rapidamente ganhou o corredor, rumo à porta principal. Verificou, com certa surpresa, que, no lugar onde ela deveria estar, uma parede lisa vedava-lhe a passagem. Retrocedeu célere, julgando que possivelmente se desorientara. Também não a encontrou no lado oposto. Retornou várias vezes ao ponto de partida e tinha a impressão de que não saíra do lugar. Indo e vindo, gastou excessiva energia antes de lembrar-se do refeitório. Lá encontraria uma saída para os fundos do prédio. Agora era o salão que ele não achava. Ia crescendo a sua inquietação e, sentindo-se encurralado, buscava uma janela, uma abertura qualquer que o levasse à rua. Nada, nada além do corredor. Nem reparou que a iluminação decaíra e poucas lâmpadas estavam acesas. O suor escorria-lhe pela testa, mas Jadon perseverava na sua inútil tentativa de fugir daquele recinto.
Apenas parou — e por alguns minutos — ao sentir falta de ar. Afrouxou o colarinho, jogou fora a gravata, levando as mãos ao coração, a bater descompassado. Temia uma síncope — tinha o coração frágil. Contudo voltou a correr, detendo-se somente para esmurrar as paredes. Ofegante, a tremer, apelava por um socorro que sabia impossível. Olhava para cima, para os lados, a língua seca, o fio de esperança nos olhos acovardados. — Devia haver uma saída, por que não haveria?
Pela última vez atravessava o longo corredor. Sentia-se fraco, uma necessidade premente de uma bebida forte, da presença da mãe. A lembrança dela fê-lo rezar, sem que conseguisse chegar ao fim das orações, saltando do princípio de uma para o final de outra.
Apoiou-se numa das paredes. O corpo escorregou por ela abaixo e perdeu os sentidos. Mais tarde o coração retomaria o ritmo normal, enquanto Jadon se levantava, a mente desanuviada, alheio à pressa e sem explicação por que estivera sentado no chão.
Diante do espelho da saleta tentou ainda lembrar-se de algo momentaneamente esquecido. Desistiu e contemplou, com vaidade, o belo rosto nele refletido. Alisava os cabelos, sorrindo para os vinte anos que a sua face mostrava. Ao lembrar-se que poderia estar atrasado para o almoço, apressou-se. Já na sala de jantar, caminhou até a grande mesa de refeições, assentando-se descuidadamente numa das cadeiras. Os braços descaíram e os olhos, embaçados, perderam-se no vazio. Estava só na sala imensa.
Fonte: https://www.fantasticacultural.com.br/artigo/856/os_comensais_-_murilo_rubiao__conto_completo.
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