O texto abaixo é de autoria de Rachel de Queiroz.
Para maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://www.ebiografia.com/rachel_queiroz/.
Boa leitura!
14 FILHOS
Quatorze
nasceram. Mal nasceram, porém, foram se ficando pelo caminho, uns de enterite,
dois de crupe, um de espasmos, um de umbigo arruinado, e os restantes apenas
com dia ou horas de existência, mortos por simples incapacidade de viver. Seis
restaram, entretanto, — miúdos, amarelos, raquíticos, cada um com a sua doença
ou a sua deficiência funcional. Quer dizer que a perda foi de 57% — proporção
de mortalidade escandalosamente elevada até para criação de pintos em baterias,
quanto mais para criação de gente.
Enquanto
o pai se interessou por aquela ninhada enfermiça, a vida ainda foi possível.
Moravam num barraco de uma só peça, coberto de sapé, numa ribanceira de morro
por nome Grotinha — nome esquisito e inadequado, pois a palavra grota dá a
ideia de água e de molhado e água ali não dá nem em poço fundo. Tem de ser
trazida na cabeça, da bica da rua, que fica a cerca de uns quatrocentos metros
de distância, afora a subida. E isso quando há água — três vezes por semana,
regularmente. Sem contar nas faltas, pois aqui na Ilha a água encanada vem do
Rio, sujeita às mesmas irregularidades do abastecimento da cidade, com a
agravante de que para cá o cano submarino ainda sofre os percalços do mar,
inclusive o assalto de um rebocador que de vez em quando mete nele a quilha e o
arrebenta.
Mas
assim mesmo em tanta pobreza, enquanto o pai de qualquer modo olhava por eles,
a vida ainda era possível: tinham uma conta limitada no armazém, uma vez por
outra recebiam dinheiro para uma roupinha ou um lençol, alguma lata de leite
condensado para o menorzinho. Houve até algum natal em que ele lhes levou
bacalhau e castanhas.
Mas
era homem casado, e por capricho jamais largou da esposa legítima, ao longo de
toda aquela aventura procriativa que já durava há vinte anos. Os quatorze
partos da amiga e os seus seis resultados vivos creio que o não impressionaram
muito, não lhe pareciam nenhuma demasia em matéria de atividades
extraconjugais. Não se reconhecia nenhuma obrigação — o pouco que fazia ainda
era por favor, de bonzinho, — os filhos não eram seus de tinta e papel, não é
mesmo? Nem filhos naturais se podiam dizer, tinham nome pior, bastante feio e
vergonhoso: filhos adulterinos. E a idiota da mãe, por humildade, por
debilidade, por fraqueza, achava que era isso mesmo, o mundo é assim, ela é que
não tinha tido sorte. Quantas por aí, ordinárias, vagabundas, e não carecem de
nada, nem se ocupam em nada, enquanto ela jamais soube o que foi viver longe da
tina de lavadeira.
E lá
um belo dia o homem aborreceu-se de vez daquela carga, daqueles meninos
amarelos e doentes, da mulher já desdentada, um feixe de ossos, o cabelo
alinhavado — e abandonou tudo, mudou-se com a esposa para o Rio.
As
crianças aí estão morrendo aos poucos de fome. O menorzinho, já tísico, não
pode nem sequer internar-se num hospital, para não contaminar os outros
doentes. Segundo informou uma autoridade que a pobre da mãe afinal consultou,
nada lhes resta a fazer. Não podem alegar o nome do pai, não podem exigir
alimento nem assistência, — porque o pai é casado, e não os reconheceu nem
reconhecê-los poderia, por causa do ferrete daquele nome feio acima citado que
além de lhes tirar o pão da boca ainda os marcará para a vida inteira.
Parece
até coisa dos tempos de antes de Cristo, quando os filhos pagavam pela culpa
dos pais, e sendo filhos de pecado, ficavam também malditos como o pecado que
os gerara. Embora o pecador principal esteja imune e fagueiro, — pronto até
para outras, que ainda é homem forte, mal chegou aos cinquenta, e continua a
detestar a esposa como a detestava há vinte anos atrás, quando procurou aquela
que depois foi mãe dos quatorze filhos. Fagueiro e irresponsável, sem ter que
prestar contas a ninguém, antes com a lei por trás de si a ampará-lo, e a
cadeia de boca aberta pronta para engolir a quem quer que o chame de feio.
*
E
tem gente que defenda uma lei dessas. Tem até um homem que subiu agora a
ministro e que na Câmara se bateu como um fanático para que essa vergonhosa
injustiça seja consagrada, regulamentada, ampliada.
Pois
a história que contei, se parece extraordinária por causa dos quatorze filhos,
não será extraordinária na sua essência, é ocorrência diária na crônica da
miséria nacional. Está a toda hora acontecendo — apenas com menos filhos —
dois, três, cinco órfãos de pai vivo, desamparados de qualquer assistência,
postos fora da lei já desde o ventre materno, pagando não só pelo pecado
original, o que já é carga bem dura, mas pelo próprio pecado que os pôs neste
mundo sem justiça.
Fonte:
https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/8267/14-filhos.
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