O
texto abaixo é da autoria de José de Alencar.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.e-biografias.net/jose_alencar.
Boa
leitura!
MÁQUINAS
DE COSER
Meu
caro colega. — Acho-me seriamente embaraçado da maneira por que descreverei a
visita que fiz ontem à fábrica de coser de Mme. Besse, sobre a qual já os
nossos leitores tiveram uma ligeira notícia neste mesmo jornal.
O
que sobretudo me incomoda é o título que leva o meu antigo. Os literatos,
apenas ao lerem, entenderão que o negócio respeita aos alfaiates e modistas. Os
poetas acharão o assunto prosaico, e talvez indigno de preocupar os vôos do
pensamento. Os comerciantes, como não se trata de uma sociedade em comandita, é
de crer bem pouca atenção dêem a esse melhoramento da indústria.
Por
outro lado, tenho contra mim o belo sexo, que não pode deixar de declarar-se
contra esse maldito invento, que priva os seus dedinhos mimosos de uma prenda
tão linda, e acaba para sempre com todas as graciosas tradições da galanteria
antiga.
Aqueles
lencinhos embainhados, penhor de um amante fiel, e aquelas camisinhas de
cambraia destinadas a um primeiro filho, primores de arte e de paciência,
primeira delícias da maternidade, tudo isso vai desaparecer.
As
mãozinhas delicadas da amante, ou da mãe extremosa, trêmulas de felicidade e
emoção, não se ocuparão mais com aquele doce trabalho, fruto de longas
vigílias, povoadas de sonhos e de imagens risonhas. Que coração sensível pode
suportar friamente semelhante profanação do sentimento?
Declarando-se
as senhoras contra nós, quase que podemos contar uma conspiração geral, porque
é coisa sabida que desde o princípio do mundo os homens gastam a metade de seu
tempo a dizer mal das mulheres, e a outra metade a imitar o mal que elas fazem.
Por
conseguinte, refletindo bem, só nos restam para leitores alguns homens graves e
sisudos, e que não se deixam dominar pela influência dos belos olhos e dos
sorrisos provocadores. Mas como é possível distrair estes espíritos preocupados
com altas questões do Estado e fazê-los descer das sumidades da ciência e da
política a uma simples questão de costura?
Parece-lhe
isto talvez uma coisa muito difícil; entretanto tenho para mim que não há nada
mais natural. A história, essa grande mestra de verdades, nos apresenta
inúmeros exemplos do grande apreço que sempre mereceu dos povos da antiguidade,
não só a arte de coser, como as outras que lhe são acessórias.
Eu
podia comemorar o fato de Hércules fiando aos pés de Ônfale, e mostrar o
importante papel que representou, na antiguidade, a teia de Penélope, que
mereceu ser cantada por Homero. Quanto à agulha de Cleópatra, esse lindo
obelisco de mármore, é a prova mais formal de que os egípcios votavam tanta
admiração à arte da costura, que elevaram aquele monumento à sua rainha,
naturalmente porque ela excedeu-se nos trabalhos desse gênero.
As
tradições de todos os povos conservam ainda hoje o nome dos inventores da arte
de vestir os homens. Entre os gregos foi Minerva, entre os lídios Aracne, no
Egito Ísis, e no Peru Manacela, mulher de Manco Capa.
Os
chineses atribuem essa invenção ao Imperador Ias; e na Alemanha, conta a
legenda que a fada Ave, tendo um amante muito friorento, compadeceu-se dele, e
inventou o tecido para vesti-lo. Naquele tempo feliz ainda eram os amantes quem
pagavam os gastos da moda; hoje, porém, este artigo tem sofrido uma modificação
bem sensível. As fadas desapareceram, e por isso os homens vão cuidando em
multiplicar as máquinas.
Só
estes fatos bastariam para mostrar que importância tiveram em todos os tempos e
entre todos os povos as artes que servem para preparar o traje do homem. Além
disto, porém, a tradição religiosa conta que, já no Paraíso, Eva criara, com as
folhas da figueira, diversas modas, que infelizmente caíram em completo desuso.
Já
não falo de muitas rainhas, como Berta, que foram mestras e professoras na arte
de coser e fiar; e nem das sábias pragmáticas dos Reis de Portugal a respeito
do vestuário, as quais mostram o cuidado que sempre mereceu daqueles monarcas,
e especialmente do grande Ministro Marquês de Pombal, a importante questão dos
trajes.
Hoje
mesmo, apesar do rifão antigo, todo o mundo entende que o hábito faz o monge;
e, se não vistam alguém uma calça velha e uma casaca de cotovelos roídos,
embora seja o homem mais relacionado do Rio de Janeiro, passará por toda a
cidade incógnito e invisível, como se tivesse no dedo o anel de Giges.
Assim,
pois, é justamente para os espíritos graves, dados aos estudos profundos e às
questões de interesse público, que resolvi descrever a visita à fábrica de
coser o Mme. Besse, certo de que não perderei o meu tempo, e concorrerei quanto
em mim estiver para que se favoreça este melhoramento da indústria, que pode
prestar grandes benefícios, fornecendo não só à população desta corte, mas
também a alguns estabelecimentos nacionais.
A
fábrica está situada à Rua do Rosário nº74. Não é uma posição tão aristocrática
como a das modistas da Rua do Ouvidor; porém tem a vantagem de ser no centro da
cidade; e, portanto, as senhoras do tom podem facilmente e sem derrogar aos
estilos da alta fashion fazer a sua visita a Mme. Besse, que as receberá com a
graça e a amabilidade que a distingue.
Era
na ocasião de uma dessas visitas que eu desejaria achar-me lá para observar o
desapontamento das minhas amáveis leitoras (se é que as tenho, visto que estou
escrevendo para os homens pensadores). Dizem que o espírito da indústria tem
despoetizado todas as artes, e que as máquinas vão reduzindo o mais belo
trabalho a um movimento monótono e regular, que destrói todas as emoções, e
transforma o homem num autômato escravo de outro autômato.
Podem
dizer o que quiserem; eu também pensava o mesmo antes de ver aquelas lindas
maquinazinhas que trabalham com tanta rapidez, e até com tanta graça.
Figurai-vos umas banquinhas de costura fingindo charão, ligeiras e cômodas,
podendo colocar-se na posição que mais agradar, e sobre esta mesa uma pequena
armação de aço, e podeis fazer uma idéia aproximada da vista da máquina. Um
pezinho o mais mimoso do mundo, um pezinho de Cendrillon, como conheço alguns,
basta para fazer mover sem esforço todo este delicado maquinismo.
E
digam-me ainda que as máquinas despoetizam a arte! Até agora, se tínhamos a
ventura de ser admitidos no santuário de algum gabinete de moça, e de passarmos
algumas horas a convsersar e a vê-la coser, só podíamos gozar dos graciosos
movimentos das mãos; porém não se nos concedia o supremo prazer de entrever sob
a orla do vestido um pezinho encantador, calçado por alguma botinazinha azul;
um pezinho de mulher bonita, que é tudo quanto há de mais poético neste mundo.
Enquanto
este pezinho travesso, que imaginareis, como eu, pertencer a quem melhor vos
aprouver, faz mover rapidamente a máquina, as duas mãozinhas, não menos
ligeiras, fazem passar pela agulha uma ourela de seda ou de cambraia, ao longo
da qual vai-se estendendo com incrível velocidade um linha de pontos, que acaba
necessariamente por um ponto de admiração (!).
Está
entendido que o ponto de admiração é feito pelos vossos olhos, e não pela máquina,
que infelizmente não entende nada de gramática, senão podia-nos bem servir para
elucidar as famosas questões do gênero do cólera e da ortografia da palavra
asseio. Questões estas muito importantes, como todos sabem, porque, sem que
elas se decidam, nem os médicos podem acertar no curativo da moléstia, nem o
Sr. Ministro do Império pode publicar o seu regulamento da limpeza da cidade.
Voltando,
porém, à nossa máquina, posso assegurar-lhes que a rapidez é tal, que nem o
mais cábula dos estudantes de São Paulo ou de medicina, nem um poeta e
romancista a fazer reticências, são capazes de ganhá-la a dar pontos. Se a
deixarem ir à sua vontade, faz uma ninharia de trezentos por minuto; mas, se a
zangarem, vai a seiscentos; e então, ao contrário do que desejava um nosso
espirituoso folhetinista contemporâneo, o Sr. Zaluar, pode-se dizer que quando
começa a fazer ponto, nunca faz ponto.
Mau!
Já me andam os calembures às voltas! É preciso continuar; mas, antes de passar
adiante, sempre aconselharei a certos oradores infatigáveis, a certos
escritores cuja verve é inesgotável, que vão examinar aquelas máquinas a ver se
aprendem delas a arte de fazer ponto. É uma coisa muito conveniente ao nosso
bem-estar, e será mais um melhoramento que deveremos a Mme. Besse.
Aos
Estados Unidos cabe a invenção das máquinas de coser, que hoje se têm
multiplicado naquele país de uma maneira prodigiosa, principalmente depois dos
últimos aperfeiçoamentos que se lhe têm feito. Mme. Besse possui atualmente na
sua fábrica seis destas máquinas, e tem ainda na alfândega doze, que pretende
despachar logo que o seu estabelecimento tomar o incremento que é de esperar.
Mme.
Besse corta perfeitamente qualquer obra de homem ou de senhora; e, logo que for
honrada com a confiança das moças elegantes, é de crer que se torne a modista
do tom, embora não tenha para isto a patente de francesa, e não morre na Rua do
Ouvidor.
Além
disto, como ela possui máquinas de diversas qualidades, umas que fazem a
costura a mais fina, outras próprias para coser fazenda grossa e ordinária,
podem também muitos estabelecimentos desta corte lucrar com a sua fábrica um
trabalho, não só mais rápido e mais bem acabado como mais módico no preço.
Presentemente
a fábrica já tem muito que fazer; mas, quando se possuem seis máquinas, e por
conseguinte se dá três mil e seiscentos pontos por minuto, é preciso que se
tenha muito pano para mangas.
Sou,
meu caro colega, etc.
Fonte: http://cronicando-cronicas.blogspot.com.br/2011/11/maquinas-de-coser-jose-de-alencar.html.
Complicado por demais rsrs
ResponderExcluirMeio complicado mesmo, tive que ler duas vezes rsrs. Mas gostei!
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