O
texto abaixo é de autoria de Graciliano Ramos.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/graciliano_ramos/.
Boa
leitura!
UM
CINTURÃO
As
minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda
impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de
réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera
a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e
isto era natural.
Os
golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam
quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me
pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com
dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me,
enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na
família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta
afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha
mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado
menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco
depois, avivou-a.
Meu
pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes
extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai
acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara
enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera,
do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante
zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha
mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei
ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria
resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil
e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá
dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela
porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo
ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá
Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele
perigo.
Ninguém
veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e
arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão?
Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava,
embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos,
atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não
consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se
deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura
infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue,
escancarava-me os olhos.
Onde
estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame
objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero
constituíram as maiores torturas da minha infância, e as consequências delas me
acompanharam.
O
homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que
a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém
se esgoelou de semelhante maneira.
Onde
estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração
bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece,
uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que
me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde
estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi
pregada a martelo.
A
fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali
desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos.
Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se
transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava
disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia
fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía,
Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me.
Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas
de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta
medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões,
livre do martírio.
Havia
uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi
aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me
para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido
inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o
algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me
num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse
ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as
portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos
lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto
de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as
vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me
ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as
tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que
a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora
esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.
O
suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava
a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos
ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto,
fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer
baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai
dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando
uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se
deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia
falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram,
procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me
que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se
tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele
sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois
se afastou.
Sozinho,
vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo,
insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na
telha negra.
Foi
esse o primeiro contato que tive com a justiça.
Parece ser real.
ResponderExcluirQue triste esse conto!
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