quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

SESSÃO LEITURA ESPECIAL - UMA CARTA E O NATAL - CARLOS HEITOR CONY

O texto abaixo foi o último publicado por Carlos Heitor Cony na Folha de São Paulo em 31 de dezembro de 2017.
Não há como negar que com Cony morre um pedaço importante da crônica, um gênero bem brasileiro de literatura.
Em um país tão pobre de cultura, perder esse autor significa também perder a oportunidade de ter acesso a novos textos geniais.
De qualquer maneira, resta a obra já escrita que ainda manterá viva sua chama durante muito tempo!
Descanse em paz!
Para saber mais sobre Carlos Heitor Cony, favor acessar: http://www.academia.org.br/academicos/carlos-heitor-cony/biografia.
Boa leitura!

UMA CARTA E O NATAL

RIO DE JANEIRO - Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o mistério —e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel viria, com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.
Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma. Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.
Na escola te corromperam. Disseram que Papai Noel era eu —e eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho. De qualquer forma, pediste um acordeão e uma caneta— e fomos juntos, de mãos dadas, escolher o acordeão.
O acordeão veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore, já vai saber o preço, o prazo de garantia, o fabricante. Não será o mágico brinquedo de outros Natais.
Quanto à caneta, também a compramos juntos. Escolheste a cor e o modelo, e abasteceste de tinta, para "já estar pronta" no dia de Natal. Sim, a caneta estava pronta. Arrumamos juntos os presentes em volta da árvore. Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.
E apanhei a caneta. Escrevi isto. Não sei, ainda, se deixarei esta carta junto com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais roubado fui eu. Meu Natal acabou e é triste a gente não poder mais dar água a um velhinho cansado das chaminés e tetos do mundo.

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