O
texto abaixo é de autoria de Rachel de Queiroz.
Para
maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://www.ebiografia.com/rachel_queiroz/.
Boa
leitura!
O
AMISTOSO
Os
visitantes ou adversários, convidados para aquela partida amistosa do chamado
esporte bretão, chegaram festivamente num caminhão ornado de arcos e
guirlandas. Sim, no começo tudo são flores. Flores e palmas, discursos,
garrafas de cerveja, e os cartolas, que se distinguem dos demais presentes
pelos bonitos ternos domingueiros, gravatas, chapéus de seda, como convém a
legítimos paredros.
Não
havendo no campo instalações de vestiário, os craques descem do carro já
devidamente uniformizados — camisa de azul-turquesa, meias e chuteiras, sim,
chuteiras regulamentares, que isso é jogo de fato e não pelada de moleques.
Deficiências, se as há, é no campo propriamente dito, que seria ótimo se não
sofresse de uma depressão bem no seu centro geométrico, exatamente onde se
costuma riscar aquele grande círculo de giz. E como essa praça de esportes se
situa numa baixada, sempre que chove apresenta o aspecto de um prato fundo
cheio de água — e quando não é água é lama.
Naquele
dia, felizmente, era apenas lama, e pouca. E sob os aplausos da assistência,
tanto mais animada porque gratuita (ainda é um problema a resolver, esse da
assistência em campo aberto, sem possibilidades de bilheteria). Juiz,
jogadores, cartolas, reúnem-se um pouco de lado, pois que os paredros estão de
sapatos novos e aquela supracitada lama os assusta um pouco; faz-se o toss, os
visitantes pegam o lado sul que é o melhor, o presidente dos locais dá
graciosamente o primeiro chute. Começou a partida!
1.°
TEMPO
Xaveco,
mulato, brevilíneo de canelas arqueadas, revela imediatamente a sua classe de
grande artilheiro: tem fôlego, tem velocidade, tem cada tiro direito ou canhoto
— tanto faz — que arranca aplausos frenéticos da torcida. Outra grande figura
em campo é o goleiro dos visitantes. E o jogo vai indo muito bem, bola para lá
e para cá, passe, cabeçada, chute a gol, gol — não, gol não, passou por cima da
trave. O couro vai para Bira, Bira perde para um galalau amarelo dos
“estrangeiros”, o galalau perde para Zico, Zico passa para Lucas, que perde
para o capitão dos visitantes, um louro de gorro de meia. Aí Xaveco interfere
na raça, toma a bola, o louro tranca, Xaveco dá-lhe uma carga, o louro acha
ruim, revida, o juiz apita, os dois se agarram e por trás chega Bira, que é
gordo e violento, e larga um pontapé no terço inferior da coluna vertebral do
louro. Fecha-se o tempo, o juiz apita, a assistência pula a cerca e invade o
campo, o pau começa a comer, mormente nas costas dos forasteiros, o juiz
retira-se e se encosta à cerca, aguardando aparentemente que os ânimos serenem.
Quem interfere são os paredros, austeros e educados, com as suas gravatas ao
vento, chamam asperamente os craques à ordem, expulsam a assistência,
interpelam o juiz, que relutantemente volta ao seu posto; aos poucos os craques
se acomodam, o juiz apita, os paredros recolhem-se. O jogo recomeça.
Mas
parece que o incidente estimulou os visitantes, que dão para jogar milhões. São
uns húngaros. O time local perde terreno, o galalau passa a marcar Xaveco, que
não dá mais uma dentro. E o diabo do louro tornou-se proprietário do balão,
marca um gol de saída, depois o seu “secretário”, um crioulinho ligeiro que é
uma faísca, marca o segundo tento; e aí Xaveco, desesperado (talvez dentro da
área penal), atira uma canelada terrível no galalau, derruba-o, avança no
crioulo, larga-lhe o salto da chuteira por cima do dedão, o crioulo grita, o
louro acode, Xaveco já completamente louco lhe dá um tapa na cara, o juiz
apita, uns gritam foul outros gritam penalty, e um engraçado diz que foi só
hands, já que Xaveco apenas meteu a mão na lata do loureba.
O
juiz continua apitando, parece que vai mesmo marcar o penalty. E um torcedor
local puxa o revólver, dizendo que aquele penalty só se for passando por cima
de algum cadáver. O juiz nessa altura se declara cheio com a partida e larga o
apito ali mesmo. Um paredro fala que ele será expulso do quadro de árbitros e o
juiz dá troco, que quadro de árbitros uma ova. Mas um dos bandeirinhas
voluntários logo se apossa do apito, passa a dirigir o pessoal com
surpreendente autoridade e, quando se vê, o jogo começa outra vez. Vai macio,
vai de valsa, é um minueto, até que consultados os cronômetros verifica-se que
acabou o primeiro half time, passando-se ao recesso para em seguida dar início
ao
2
° TEMPO
que
não houve, segundo passo a expor. Pois não vê que no Distrito havia uma queixa
contra Bira — queixa dada por certa donzela que deixara de o ser por artes do
craque. Bira escondera-se e só agora aparecia em público, atendendo a apelos da
torcida, por tratar-se de amistoso importantíssimo. Mas a polícia, que não tem
bandeira, aproveitara a ocasião e, antes que o réu pirasse, dava-lhe voz de
“esteje preso”.
A
assistência, entretanto, que de nada sabia, cuidou que a prisão se prendia à
queixa dos visitantes por causa do pontapé de há pouco. E vendo Bira ser
arrastado campo a fora, irrompeu num sururu dos diabos, vaiando as visitas com
buus e nomes feios; as quais visitas, que tomavam Coca-Cola encostadas à cerca,
vendo-se atingidas não só pelos doestos como por pedaços de pau e tijolo,
revidaram com as garrafas de refrigerante. O tempo fechou outra vez. Os
polícias largaram o preso e se meteram no conflito. E quando os de fora
começavam a apanhar feio, o motorista deles teve uma ideia: encostou o caminhão
bem perto e tocou a buzina. A turma entendeu logo (ou quem sabe já era manobra
habitual em “amistosos”?) e de um em um foram deslizando da briga e subindo
para o carro. O que sei é que, quando os locais deram pela coisa, os inimigos
já partiam numa nuvem de poeira, abandonando na pressa um dos seus paredros,
malferido, com o sangue escorrendo do nariz e o belo terno roto.
Bira,
igualmente, aproveitara a confusão para ir saindo de manso; agachado numa
moita, lá em cima do morro, ficou a espiar o tintureiro chegar, encostar e, de
um em um, recolher os remanescentes da refrega. E só saiu do esconderijo tarde
fechada, quando no campo completamente deserto uma garça vinda do Jequiá
sobrevoava o alagado, bicando restos das flores do buquê ofertado pelos
visitantes.
[Ilha,
1954]
Gostei, apesar que achei meio complicado kk
ResponderExcluirQue conto hilário! Lembrei dos jogos de futebol do meu tempo de criança, quando tudo podia acontecer rsrs. Amei ler!
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