O
texto abaixo é de autoria de Afonso Romano de Sant’Anna.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1162/affonso-romano-de-santanna.
Boa
leitura!
PORTA
DE COLÉGIO
Passando
pela porta de um colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta
da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por isto, parei,
como se precisasse ver melhor o que via e previa.
Primeiro
há uma diferença de clima entre aquele bando de adolescentes espalhados pela
calçada, sentados sobre carros, em torno de carrocinhas de doces e
refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua. Não é só o uniforme. Não é só
a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda dentro de uma redoma ou
aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não estejam. Vários já
sofreram a pancada da separação dos pais. Aprenderam que a vida é também um
exercício de separação. Um ou outro já transou droga, e com isto deve ter se
sentido (equivocadamente) muito adulto. Mas há uma sensação de pureza angelical
misturada com palpitação sexual, que se exibe nos gestos sedutores dos
adolescentes. Ouvem-se gritos e risos cruzando a rua. Aqui e ali um casal de
colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo. Beijar em público: um
dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o namorado na
frente dos pais e da vida, como quem diz: também tenho desejos, veja como sei
deslizar carícias.
Onde
estarão esses meninos e meninas dentro de dez ou vinte anos?
Aquele
ali, moreno, de cabelos longos corridos, que parece gostar de esportes, vai se
interessar pela informática ou economia; aquela de cabelos loiros e crespos vai
ser dona de butique; aquela morena de cabelos lisos quer ser médica; a
gorduchinha vai acabar casando com um gerente de multinacional; aquela esguia,
meio bailarina, achará um diplomata. Algumas estudarão Letras, se casarão,
largarão tudo e passarão parte do dia levando filhos à praia e praça e
pegando-os de novo à tardinha no colégio. Sim, aquela quer ser professora de
ginástica. Mas nem todos têm certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular
resolvem. Têm tempo. É isso. Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.
Aquela
menina morena magrinha, com aparelho nos dentes, ainda vai engordar e ouvir
muito elogio às suas pernas. Aquela de rabo-de-cavalo, dentro de dez anos se
apaixonará por um homem casado. Não saberá exatamente como tudo começou. De
repente, percebeu que o estava esperando no lugar onde passava na praia. E o
dia em que foi com ele ao motel pela primeira vez ficará vivo na memória.
É
desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na empresa em que será gerente.
O outro irá fazer doutorado no exterior, se casará com estrangeira, descasará,
deixará lá um filho - remorso constante. Às vezes lhe mandará passagens para
passar o Natal com a família brasileira.
A
turma já perdeu um colega num desastre de carro. É terrível, mas provavelmente
um outro ficará pelas rodovias. Aquele que vai tocar rock vários anos até
arranjar um emprego em repartição pública. O homossexualismo despontará mais
tarde naquele outro, espantosamente, logo nele que é já um don juan. Tão
desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez político. Daqui a dez
anos os outros dirão: ele sempre teve jeito, não lembra aquela mania de reunião
e diretório?
Aquelas
duas ali se escolherão madrinhas de seus filhos e morarão no mesmo bairro, uma
casada com engenheiro da Petrobrás e outra com um físico nuclear. Um dia, uma
dirá à outra no telefone: tenho uma coisa para lhe contar: arranjei um amante.
Aconteceu. Assim, de repente. E o mais curioso é que continuo a gostar do meu
marido.
Se
fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali seria guerrilheiro. Mas esta
hipótese deve ser descartada.
Quem
estará naquele avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um dia
convidará a todos da turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o primeiro
aborto! Aquela ali descobrirá os textos de Clarice Lispector e isto será uma
iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na primeira página do jornal?
Qual será o tranqüilo comerciante e quem representará o país na ONU?
Estou
olhando aquele bando de adolescentes com evidente ternura. Pudesse passava a
mão nos seus cabelos e contava-lhes as últimas estórias da carochinha antes que
o lobo feroz os assaltasse na esquina. Pudesse lhes diria daqui: aproveitem
enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto estão na porta da vida e do
colégio. O destino também passa por aí. E a gente pode às vezes modificá-lo.
Que lindo esse texto! Amei ler.
ResponderExcluirMuito bom ....
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