O
texto abaixo é de autoria de Nelson Rodrigues.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/nelson_rodrigues/.
Boa
leitura!
O
ESCRETE DE LOUCOS
"Repito:
o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do Brasil entra na história
com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem."
Amigos,
a bola foi atirada no fogo como uma Joana d’Arc. Garrincha apanha e dispara. Já
em plena corrida, vai driblando o inimigo. São cortes límpidos, exatos, fatais.
E, de repente, estaca. Soa o riso da multidão — riso aberto, escancarado, quase
ginecológico. Há, em torno do Mané, um marulho de tchecos. Novamente, ele
começa a cortar um, outro, mais outro. Iluminado de molecagem, Garrincha tem nos
pés uma bola encantada, ou melhor, uma bola amestrada. O adversário para
também. O Mané, com quarenta graus de febre, prende ainda o couro.
A
partida está no fim. O juiz russo espia o relógio. E o Brasil não precisa
vencer um vencido. A Tchecoslováquia está derrotada, de alto a baixo, da cabeça
aos sapatos. Mas Garrincha levou até a última gota o seu “olé” solitário e
formidável. Para o adversário, pior e mais humilhante do que a derrota, é a
batalha desigual de um só contra onze. A derrota deixa de ser sóbria, severa,
dura como um claustro. Garrincha ateava gargalhadas por todo o estádio. E,
então, os tchecos não perseguiram mais a bola. Na sua desesperadora impotência,
estão quietos. Tão imóveis que pareceram empalhados.
Garrincha
também não se mexe. É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco
europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o
Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos
quadris como uma briosa lavadeira. O juiz não precisava apitar. O jogo acabava
ali. Garrincha arrasara a Tchecoslováquia, não deixando pedra sobre pedra. Se
aparecesse, na hora, um grande poeta, havia de se arremessar, gritando: — “O
homem só é verdadeiramente homem quando brinca!” Num simples lance isolado,
está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está todo o Brasil. E jamais
Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como ao imobilizar, pela magia
pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos, tão mais belos, tão mais
louros do que os nossos. Mas vejam vocês: de repente, o Mané põe, num jogo de
alto patético, um traço decisivo do caráter brasileiro: — a molecagem.
O
Hélio Pellegrino, que é poeta e psicanalista, dizia-me, outro dia: — “O
brinquedo é a liberdade!” E para Garrincha, o brinquedo, no fim da batalha, foi
a molecagem livre, inesperada, ágil e criadora. Varou os pés adversários, as
canelas, os peitos. Não tinha nenhum efeito prático a sua jogada arrebatadora e
inútil. Mas o doce na molecagem é a alegria insopitável e gratuita. E não
houve, em toda a Copa, um momento tão lírico e tão doce.
Amigos,
ninguém pode imaginar a frustração dos times europeus. Eles trouxeram, para 62,
a enorme experiência de 58. Jogaram contra o Brasil na Suécia, trataram de
desmontar o nosso futebol, peça por peça. Toda a nossa técnica e toda a nossa
tática foram estudadas com sombrio élan. Sobre Garrincha, eis o que diziam os
técnicos do Velho Mundo: — “Só dribla para a direita!” Era a falsa verdade que
se tornaria universal. O próprio Pelé parecia um mistério dominado.
Após
quatro anos de meditação sobre o nosso futebol, o europeu desembarca no Chile.
Vinha certo, certo, da vitória. Havia, porém, em todos os seus cálculos, um
equívoco pequenino e fatal. De fato, ele viria a apurar que o forte do Brasil
não é tanto o futebol, mas o homem. Jogado por outro homem o mesmíssimo
futebol, seria o desastre. Eis o patético da questão: — a Europa podia imitar o
nosso jogo e nunca a nossa qualidade humana. Jamais, em toda a experiência do
Chile, o tcheco ou o inglês entendeu os nossos patrícios. Para nos vencer, o
alemão ou o suíço teria de passar várias encarnações aqui. Teria que nascer em
Vila Isabel, ou Vaz Lobo. Precisaria ser camelô no largo da Carioca. Precisaria
de toda uma vivência de botecos, de gafieira, de cachaça, de malandragem geral.
Aí
está: — no Velho Mundo os sujeitos se parecem, como soldadinhos de chumbo. A
dessemelhança que possa existir de um tcheco para um belga, ou um suíço, é de
feitio do terno ou do nariz. Mas o brasileiro não se parece com ninguém, nem
com os sul-americanos. Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O
homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e
criador: a molecagem. Citei a brincadeira de Garrincha num final dramático de
jogo. Era a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané,
magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e
deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus
claustros, os seus rios.
Vocês
assistiam, pelo videoteipe, todos os jogos. O europeu aparecia com uma seca,
exata objetividade, sem uma concessão ao delírio. Ele próprio se engradava
dentro de um esquema irredutível. Ao passo que o Brasil faz um futebol
delirante. Numa simples ginga de Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras
eternas. O nosso escrete era vidência, iluminação, irresponsabilidade criadora.
Só a Espanha é que chegou a lembrar o Brasil. Seu escrete parecia passional
também. Mas logo se percebeu a falsa semelhança. Os espanhóis têm uma paixão
sem gênio, uma paixão burra. Chegaram a nos ameaçar, por vezes. Veio, porém, um
sopro da praça Sete, do Ponto de 100 Réis1, e Amarildo, o Possesso, encampou
dois.
Contra
a Inglaterra foi uma vitória linda. Não tínhamos rainhas, nem Câmara de Comuns,
nem lordes Nelsons. Mas tínhamos Garrincha. E tínhamos Zagalo, o de canelas
finíssimas e espectrais. E Nilton Santos, com a sua salubérrima eternidade. E
negros ornamentais, folclóricos, como Didi, Zózimo e Djalma Santos. Logo se
viu, entre o nosso craque e o inglês, todo um abismo voraz. O inglês apenas
joga futebol, ao passo que o brasileiro “vive” cada lance e sofre cada bola na
carne e na alma. Djalma Santos põe, no seu arremesso lateral, toda a paixão de
um Cristo negro.
E
mesmo fora do futebol, o europeu faz uma imitação da vida, enquanto que o brasileiro
vive de verdade e ferozmente. Ninguém compreenderá que foi a nossa qualidade
humana que nos deu esta Copa tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais:
— foi o mistério de nossos botecos, e a graça das nossas esquinas, e o soluço
dos nossos cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes. Jogamos no Chile com
ardente seriedade. Mas a última jogada de Mané, no adeus os Andes, foi uma
piada, tão linda e tão plástica. No mais patético das batalhas, o escrete soube
brincar. Esse toque de molecagem brasileira é que deu à vitória uma
inconcebível luz.
Fatos
& Fotos, Edição histórica, junho de 1962
(1)
O Ponto de Cem Réis é como ficou conhecida a Praça Vidal de Negreiros,
localizada em João Pessoa (PB)
Não gosto muito de futebol, mas amei ler esse texto!
ResponderExcluirAchei meio complicado rs
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