O
texto abaixo é de autoria de Paulo Mendes Campos.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: www.ebiografia.com ›
paulo_mendes_campos.
Boa
leitura!
A
AURORA
A
aurora chegou vestida de cor-de-rosa, passou pela vidraça, passou através de
minhas pálpebras, acordou meus olhos. Mas não me acordou a alma, que ficou
dorme-dormindo, boba e semi-iluminada. Depois ela, a aurora, foi esvoaçar sobre
os telhados, e era como se aquilo estivesse acontecendo no passado. Meus olhos
ficaram expiando aquela aurora doida que esvoaçava e se adelgaçava e deixava
nascer de seu ventre róseo os primeiros passarinhos matutinos.
Como
são vivos e novos os passarinhos enxotados pela aurora! Como a alma de um homem
é boba e vadia! Como a doçura da
preguiça de uma criatura que amanhece é infinita! Como às vezes, ao surgir o
dia, o homem se descobre miraculosamente perdoado de todos os crimes, crimes
não, de todas as coisas feias que cometeu. Que nem cometeu, que deixou
acontecer. Quem nos perdoa, não sabemos. Talvez seja assim: o sofrimento se
junta, vai se juntando dentro da gente, lacerando, doendo, até que um dia a dor
é tanta que nos pune. Então, ficamos perdoados. Puros, recomeçamos de alma
nova, passada a limpo como um exercício de escola.
Voltando
à aurora, ela começou a sentir que morria. Ficou pálida. Um vento frio
levantava as grinaldas da janela. As árvores começaram miraculosamente a dar
folhas e frutos. Os pássaros se coloriram. Trens fumacentos avançaram sobre a
cidade. Homens gritavam vendendo coisas. Ah, a aurora foi ficando palidíssima e
morreu, morreu bem em cima dos meus olhos, no instante em que as duas últimas
estrelinhas eram riscadas do show noturno. Amanhecia implacavelmente.
Aí
chegou a vez do enterro da aurora. O coche foi levado por andorinhas de
sobrecasaca, foi levado para muito longe, para muito além de um monte escuro, e
desapareceu.
Fiquei
só outra vez. Por um momento quis que ela voltasse. Depois resolvi ser
novamente um homem, com duas pernas, dois braços, dez dedos práticos, com uma
cabeça que deve decidir onde devo pôr os meus pés. É meio mórbido ficar
lamentando indefinidamente a perda de uma aurora, mesmo uma aurora especial
como aquela, capaz de perdoar-nos os pecados.
Ergui-me
da cama resoluto como um rei e fui lavar a cara. Escovei os dentes com um
máximo de alegria. Abençoado sejas, irmão dentifrício, que me refrescas a boca.
Em
jejum, acendi como sempre o primeiro cigarro. Que me dá tosse. Não importa.
Abençoado sejas, irmão fumo, irmã fumaça que sobes para o céu.
Deitei-me
na cama de novo enquanto os cavalos dos poemas antigos traziam o Sol em
atropelada brilhante. Vi-os fortes e louros irromper pelo céu onde tinha
morrido de morte linda a aurora. Abençoado seja o Sol. Abençoado seja o dia.
Abençoado seja o descanso. Abençoados sejam os pássaros diurnos e noturnos.
Abençoadas sejam as criaturas de todo o mundo. Abençoado o fogo; a terra; o ar;
a água. Abençoada seja a aurora. Que me perdoa de meus pecados.
Que linda crônica! Amo esses textos de Paulo Mendes de Campos, que eu lia no meu tempo de escola. Muito bom ler novamente!
ResponderExcluirMuito bonita essa crônica..
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