O
conto abaixo é de autoria de Alcântara Machado.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/antonio-alcantara-machado.htm?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996.
Boa
leitura!
MISS
CORISCO
Embora
alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita, o título oficial era
Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro
nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram uma caixa. Mas nunca viu um tostão
porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. Miss Corisco foi eleita
pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho era sardenta. A irmã do João
tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada
Miss Corisco.
Aí
deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior emoção de
sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão, uma fita do Rodolfo
Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e... não conto porque é
segredo. Respeitamos o segredo (escreveu o jornal), pois naturalmente encobria
uma linda história de amor. Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo?
Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos.
Resposta admirável (comentou O Cachoeirense) que revela em Miss Corisco uma
patriota digna de emparelhar com Clara Camarão, Anita Garibaldi, Dona Margarida
de Barros e outras heroínas da nacionalidade. Finalmente perguntaram: O que pensa
do amor? Respondeu: O amor, na minha fraca opinião, é uma coisa incompreensível
mas que governa o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda
filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss.
Miss
Corisco foi retratada em várias posições: com um cachorrinho no colo, apanhando
rosas no jardim, as costas das mãos sustentando o queixo. Deu também um
autógrafo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair
bem direitinho e as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os
representantes do O Cachoeirense se retiraram. Miss Corisco foi varrer a
cozinha como era de sua obrigação todos os dias inclusive domingos e feriados e
na manhã seguinte tomou a jardineira em companhia do irmão casado para
comparecer na cidade perante o júri estadual.
O
Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a
Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a
assistência entusiasmada erguia vivas ao Brasil e à raça. As candidatas
desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juízes eram cinco: um brasileiro,
dois italianos, um filho de italiano e um português. Predominava neles o
espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O doutor Noé
Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos
ternos. Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.
Ouviu
então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz
e lenço de seda na mão, pelo doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público.
Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina.
Falou do culto que na antiga Grécia se votava à formosura física. Acentuou
depois a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano.
Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes tem também
mais de uma vez contribuído para o progresso geral dos povos, citando vários
exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que
lhe dedicou D. Pedro I à influência benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se
à competência do júri, à sua isenção de ânimo e confessou que a única nota
dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unânimes da
assistência. Perorando entoou um hino inflamado à peregrina formosura de Miss
Corisco. Disse então: Unindo à beleza clássica da Vênus de Milo a sedução
estonteante da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior do que
Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região!
A Pátria não é somente, como soem pensar certos espíritos imbuídos de
materialismo, ou a lei que garante a propriedade privada! A Pátria é mais
alguma coisa, alguma coisa de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos
contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss
Paraíba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da
nacionalidade! Para nós, patriotas, conscientes e eternos enamorados da Beleza,
Miss Paraíba do Sul é neste momento o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é
vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!)
Um
a um os membros do júri beijaram as mãozinhas róseas e espirituais de Miss
Paraíba do Sul enquanto a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência
do maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do
Guarani.
Muito
vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas, Miss Paraíba do Sul
concedeu então as primeiras entrevistas. Externou sua opinião sobre a futura
sucessão presidencial, a cultura da laranja, a questão religiosa no México,
Mussolini, padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os
perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio, o diabo. No Grande Hotel
Mundial era uma romaria de manhã à noite. Muito afável, Miss Paraíba do Sul
recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos.
O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um
jornalista: É de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no
quarto entra. Mas o irmão, pelo sim, pelo não, caiu de bofetadas em cima do
camareiro. O caso foi parar na polícia onde o prestígio de Miss Paraíba do Sul
conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível.
Puseram
à sua disposição um automóvel fechado, uma máquina de escrever portátil e um
binóculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuroso arquiteto
Barros Jandaia pôs gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss
Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe
deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon. A Livraria
Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido. E assim por diante.
Miss
Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo presidente do Estado,
respondeu com muita graça às perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit
Londrinos (ovalados) aos presos da cadeia pública. Visitou também a Câmara
Municipal. Aí foi saudada por um vereador que a comparou à mimosa violeta dos
nossos vergéis que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e
conquista pela sua modéstia exemplar.
Foram
quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga. Miss Paraíba do
Sul embora delicadamente deixou transparecer que a glória era um fardo pesado
demais para seus ombros frágeis. E seguiu de vagão especial para a capital do
país. Todas as cidades do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o
promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que
se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vivório, o
trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que não
agüentava mesmo.
Começou
a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seção livre
dos jornais. E bilhetes de apaixonados anônimos. E baile na torpedeira Paraíba
do Sul. E retratos de todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E
tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter
mais audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia
muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu
de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: Enquanto Miss
Paraíba do Sul jantava, conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a
deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre
o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao ponto de verificarmos o número: era
trinta e três e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do
sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza.
Coisas
assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como lembrança o famoso
sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão casado) já estava imprestável
com a sola até fura não fura. Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo
exposto na redação do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um
amor de sapatinho.
Enfim
vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de roupa de banho
para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame
antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades
científicas, empolgou a imprensa, provocou desinteligências entre pessoas que
se davam desde
os
bancos escolares. Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi considerada a
mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston.
Chorou
de verdade. Não se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel. Em público não perdeu
a linha. Era toda sorriso diante de Miss Brasil. Entrevistada, declarou que a
escolha do júri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um
grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia
coisas amáveis a respeito de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a
Miss Terra de Santa Cruz, a Miss Simpatia Verde-Amarela. Todos reconheceram que
a vitória moral lhe pertencia. Era um consolo.
De
volta à capital do seu Estado, no entanto, ela resolveu mudar de atitude.
Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil? Uma beleza sem dúvida. Mas
beleza impassível. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum.
Cada vestido que só vendo. Todos de carregação. E era visível nos seus traços a
ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça
brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores do concurso escaparam.
Amáveis, sim. Porém parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as
candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma
das concorrentes lhe perguntou: Por que não corta um pedaço da barba e gruda na
cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E
perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado.
Corisco
recebeu de luto na alma a sua Vênus. O pai de Miss Paraíba do Sul sacudiu a
cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmão
casado falavam na vitória moral, na simpatia do povo, nos protestos da
imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía do hotel um popular me disse que eu
era a eleita do coração dos brasileiros! Então, papai, que tal?
Mas
o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro
contos foi outra que abiscoitou. Aí é que está. Os oitenta e quatro contos foi
outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas
depois era preciso jurar que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória
moral era mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém
porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra de Santa
Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.
Muito bom o conto.
ResponderExcluirQue lindo conto, gostei muito da história de Miss Corisco.
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