O texto
abaixo é de autoria de Lima Barreto.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/lima_barreto/.
Boa
leitura!
CARTA
DE UM DEFUNTO RICO
"Meus
caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro nº 7..., da 3ª quadra, à direita,
como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João
Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu
severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das
montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha
dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno
vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do
que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao
meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um
marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui
afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos,
purificar-me no ar superior - e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro
que enche os límpidos espaços.
Não
tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a
inteligência de tanta gente.
Não
me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do
Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para
autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes
herdeiros - coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia;
não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática
monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a
literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim
de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações
de um passado que não devia ser avivado.
Afirmando
isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm,
por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos
que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes
dos seus primitivos donos.
Demais,
elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de
emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos
seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e
as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem
e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado,
saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações
de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as
coisas se enchem de beleza.
É o
sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem
que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si
etc. etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.
Por
isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e
cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos
imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de
inatingível, é supremamente sacrílego.
De
resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não
se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem
tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados
pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há,
no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas,
com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a
digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que
ingerimos.
Mas...
estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os
mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da superexistência
aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o
ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os
que não conseguem isso - ai deles!
Alonguei-me
nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra.
O
meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto
sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é
propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco
de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de
Letras.
Enterro
e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por
vivos para vivos.
É
uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser
enterrados. Cada um enterra seu pai como pode - é uma sentença popular, cujo
ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos
sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos,
tanto na forma como no fundo.
O
meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os
cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas,
eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens
terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que
fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele
até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não
havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.
Triste
destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população
de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá
de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus
próprios parentes.
Faço
esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo
das coisas humanas, um vazio absoluto.
Essa
convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato
de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a
quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.
Adivinhei
isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e
eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...
Carlos,
meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as
sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu
pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!
Nem
o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria
para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.
Os
vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em
que estou foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre...
Não
seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que
havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha
missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.
Agradeço
a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros
parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um
cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos
cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal
maneira andrajosa que causava dó?
Se
vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres
cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O
brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.
Era
o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que
estou sempre junto de vocês. É tudo isto do
José
Boaventura da Silva.
N.B.
- Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e
segundo a sabedoria universal, em toda a parte. - J.B.S."
Posso
garantir que transladei esta carta para aqui sem omissão de uma vírgula.
Gostei de ler e fiquei imprecionada, com esse texto diferente do grande escritor Lima Barreto. Muito bom!
ResponderExcluirBem interessante e tem sentido!
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