O
texto abaixo é de autoria de Alcântara Machado.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/alcantara_machado/.
Boa
leitura!
APÓLOGO
BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA
O
trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era
noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos
passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma
fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.
Trem
misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de
cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada
para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre
uns que gritavam:
- Vá
pisar no inferno!
Ele
pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.
O
trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até
aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até
gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só
as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.
Noite
sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a
pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias.
O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de
Maguari.
Porém
aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do
segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de
Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari.
Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só
dava uma folga no bocejo para cuspir.
Baiano
velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou
conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou
uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm
descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De
repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz:
- O
jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O
rapaz respondeu:
-
Não sei: nós estamos no escuro.
- No
escuro?
- É.
Ficou
matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:
-
Não tem luz?
Bocejo.
-
Não tem.
Cuspada.
Matutou
mais um pouco. Perguntou de novo:
- O
vagão está no escuro?
-
Está.
De
tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele
assim:
-
Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver
sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a
luz não foi feita. Continuou berrando:
-
Luz! Luz! Luz!
Só a
escuridão respondia.
Baiano
velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:
-
Que é que há?
Baiano
velho trovejou:
-
Não tem luz!
Vozes
concordaram:
-
Pois não tem mesmo.
Foi
preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é
cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir
contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O
governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus
direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é
tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo.
Todos
gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o
chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
-
Ele é pobre como a gente.
Outro
sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.
-
Foguetes também?
-
Foguetes também.
-
Be-le-za!
Mas
João Virgulino observou:
-
Isso custa dinheiro.
-
Que é que se vai fazer então?
Ninguém
sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari,
tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as
regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:
-
Dois quilos de lombo!
Cortou
outro e disse:
-
Quilo e meio de toicinho!
Todos
os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos
carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar
e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos
os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
-
Quantas reses, Zé Bento?
- Eu
estou na quarta, Zé Bento!
Baiano
velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu
quase que chorando.
-
Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano
velho respondeu:
- É
por causa das trevas!
O
chefe do trem suplicava:
-
Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João
Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.
-
Aqui ainda tem uns três quilos de coxão mole!
O
chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já
estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé
contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas
cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão.
Tocando
a sineta o trem de Maguari fungou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões
se esvaziaram. O último a sair foi o chefe muito pálido.
Belém
vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um:
Os passageiros no trem de Maguari amotinaram-se jogando os assentos ao leito da
estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de
frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito
sangrento entre populares.
Dada
a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades.
Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e
pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na
negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no
bolso. O delegado perguntou:
-
Qual a causa verdadeira do motim?
O
homem respondeu:
- A
causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
O
delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:
-
Quem encabeçou o movimento?
Em
meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:
-
Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis
jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a
autoridade não se brinca.
Que texto legal, amei ler!
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