O texto abaixo é de autoria da escritora portuguesa Maria Judite de Carvalho.
Para maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Oliveira_Paiva.
Boa leitura!O VELHO VOVÔ
O trapiche estava no seu antigo posto de honra, suspenso por uma elevada escada, a cujos pés havia poços deixados pela maré, que se retraíra, e o oceano parecia magro, com os arrecifes à mostra, fugindo timoratamente, encolhido, medroso da terra. Uma interminável faixa de areia molhada, brandamente côncava, servia de guarda-pisa, entre o frouxel das ondas e o limiar da povoação. Em presença dessa depressão geral do oceano, sentia-se a sensação de quem desce, — a falta de fôlego de uma vertigem.
Pausadamente, homens quase nus, de tanga e ceroula curta à guisa de calções, entravam pelo mar adentro e abeiravam-se, com água pelos peitos, dos lanchões que oscilavam apenas, carregados de mercadorias. O calor do sol untava de suor a esses trabalhadores, de linda musculatura atlética, que suspendiam fardos, com admirável precisão mecânica, e traziam-nos para o seco. Outros, em movimento contrário, embarcavam algodão e café e couros, desempilhando altas montanhas de gêneros acumuladas pela areia, entre latadas de escaleres e esqueletos de lanchas velhas. Ao longe, se avistava o branco velejamento das jangadas que repousavam fora do alcance das ondas. E, por toda parte, como cercando os domínios do velho trapiche, espalhavam-se massas complicadas de ferros, quais membros esfacelados de um corpo gigantesco e bruto. Os navios ancorados, longe, lá estavam como abandonados no seio das águas, apenas visitados por tanchões vagarosos. E, de quando em vez, no deserto azul, passava a alvura imponente de uma jangada.
Recostado ao peitoril do galpão que serve de vestíbulo à carcaça roxo-terra do velho trapiche, eu abismava o olhar nesse panorama vivo de sol, de terra e de águas. O firmamento era uma tela suspensa, que se encurvava, que se estirava pelos ignotos confins do poente, que se cosia, rumo do norte, no debrum longínquo do céu com o mar. A cidade, montada sobre mansos outeiros, onde outrora rastejaram o zéfiro e as ondas, parecia vir descendo para as areias brancas, seio amorenado pelo resfolegar da luz. Os tetos, como escudos de tartarugas, se agachavam ebriamente sob os tufos aéreos dos coqueiros, que dedilhavam uma harmonia vaga, impalpável, com luzimentos quentes, e roçavam ilusoriamente no azul que nos abafa com aquele bojo infinito, que nos persegue por toda parte, ao campo, à rua, pelas frestas, e pelas nesgas que se entrevê de dentro mesmo das habitações; esse azul que nos enraiva, que desafia o olhar ambicioso do artista para devastar o além dessa casca terrível que os antigos foram obrigados a julgar solidamente brochada de estrelas, de lua e de sol.
Voavam nuvens, verdadeiros flocos de espuma, esparsas, macias que pareciam roçar nas nossas faces como cabelos finíssimos de crianças. Aquele azul sublime entrava-me pelas narinas!
E, finalmente, o mar enchia. Aqueles rochedos negros que emergiam à altura do porto, iam ser abafados. O comércio não podia mais refrear o ímpeto da onda. Soava a hora do paralisamento. Ai daquele que se arriscasse ao bruto! Os barquinhos e lanchas impavam aflitivamente. E só a jangada é que se aventurava a passar audaciosamente o rolo do mar.
Entretanto, o seio virgem das areias era, pela primeira vez, mordido pelo dente da ciência humana. O calmo inglês fazia aquele mesmo homem de tanga e ceroula à guisa de calção, batizar a sua terra, pagã de indústria; e a fúria do mar batia-se tolamente, como os heróis da guerra ante os obscuros mineiros e os profundos pensadores: enterrava-se o primeiro pegão do viaduto, a primeira molécula daquele gigante que estava esfacelado pela praia afora.
E a massa roxo-terra do velho trapiche balançava-se na maré cheia, como barco encalhado, oco, apenas com os camarins de empregados e apetrechos de embarcações; o lampião da vigia apagado, fumaçoso, com o azeite frio; a luz do dia entrando pelas gretas; — ele caía aos pedaços, triste pela decepção, macambúzio! — ele, o velho vovô, do tempo em que a minha avó dizia à minha inocência de criança que os meninos vêm é do mar, quando eu lhe perguntava donde a gente nasce.
Amo tanto aquelas tábuas, e aquelas ondas bravas de cujo turbilhão eu via a cada instante rebentar um nenenzinho!
Fonte: http://www.poeteiro.com/search/label/O%20velho%20vov%C3%B4%20%28Conto%29.
Muito bonito! Uma ótima leitura.
ResponderExcluir