O texto abaixo é de autoria da escritora portuguesa Maria Judite de Carvalho.
Para maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Judite_de_Carvalho.
Boa leitura!PERPLEXIDADE
A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do
que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas
breves. «Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a
maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô,
ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibís. Nessa noite
recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém,
ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no
chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha
e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira,
aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava
alguém com requintes de malvadez.
«Isto, por exemplo.»
«Isto o quê»
«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava
tanto a filha de oito anos, tão subitamente. Como de costume preparava-se para
lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os outros.
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Não percebo.»
«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e… Dizem-nos para não
matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a
televisão… Nos filmes, nos anúncios… Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem
se prepara para uma corrida difícil.
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o teto em busca de inspiração. «A
vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do
absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham
recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.
Lindo conto! Gostei de conhecer.
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