O texto abaixo é de autoria de Nelson Rodrigues.
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Boa leitura!
MAUSOLÉU
Durante uma hora maciça, deixou-se ficar, em pé, numa contemplação espantada. Lá estava a mulher, de pés unidos, as mãos entrelaçadas, entre as quatro chamas irmãs dos círios. Parentes e amigos tentavam convencê-lo: “Senta! Senta!” Mas ele, fiel à própria dor, era surdo a esses apelos. Como insistissem, acabou explodindo: “Não me amolem, sim?” E continuou, firme, empertigado. No fundo, achava que sentar, em pleno velório da esposa, seria uma desconsideração à morta. Uma hora depois, no entanto, cansou. E esta contingência física e prosaica fê-lo transigir. Ocupou uma cadeira entre dois amigos. Uma senhora gorda, aliás vizinha, inclinou-se, suspirando:
– É por isso que eu não topo viajar de avião!
Pronto. A dor do viúvo, que estava provisoriamente amortecida, reagiu. Ergueu-se, alucinado. E foi um custo para contê-lo. Apertando a cabeça, entre as mãos, encheu a sala:
– Sabem o que é que me dana? Hein? Sabem? — interpelava os presentes; prosseguiu: — É de que do Rio para São Paulo ou vice-versa, não cai avião nenhum, ninguém morre. É o tipo da viagem canja, que todo mundo faz, com um pé nas costas. É ou não é?
– É.
Mergulhou o rosto nas duas mãos, soluçando:
– Então, como é que Arlete vai morrer nessa viagem besta? Como?!… Várias pessoas vieram confortá-lo:
– Calma, Moacir, calma!
Debateu-se nos braços que procuravam contê-lo: “Eu quero morrer também, oh, meu Deus!…”
História de amor
Estavam casados há um ano. E, agora, no meio do velório, desgrenhado, Moacir fazia confidências públicas: “Nossa vida foi uma lua de mel tremenda!” Rilhava os dentes, evocando o beijo cinematográfico que dera no aeroporto, pouco antes de partir o avião. A esposa ia a São Paulo visitar uma tia doente e Moacir, retido no Rio por uma série de negócios, não pôde acompanhá-la. Agora se arrependia de uma maneira atroz; esbravejava: “Ah, se eu soubesse! Se eu pudesse adivinhar!” E sustentava a tese de que teria sido, para ele, um altíssimo negócio, um negócio da China, ter despencado no mesmo avião, abraçado à mulher. E repetia:
– Como vai ser? Como vai ser?
Às dez horas da manhã, saiu o enterro. E, então, foi uma tarefa hercúlea controlar a dor furiosa do Moacir. Ele se arremessava contra as paredes; atirava-se no chão. Os pais da morta, as irmãs paravam de chorar, intimidados, ante uma dor maior. Não queriam deixar o viúvo ir ao cemitério; ele teve que prometer: “Eu fico quietinho! Juro que eu fico quietinho!” E, de fato, comportou-se, lá, relativamente bem. Na saída, virou-se para o coveiro, numa recomendação patética: “Trate direitinho da sepultura, que eu dou uma gratificação, ouviu?” Enfiou a mão no bolso, apanhou cem cruzeiros, que passou ao fulano:
– Pra uma cervejinha! Mas não se esqueça! Sim?
A dor
Encerrou-se na própria residência, disposto a viver em função de sua dor. Estava disposto a sofrer para o resto da vida. Encheu a casa de retratos da esposa. Segundo a maledicência jocosa da vizinhança, havia retratos, até, na cozinha. Os amigos e parentes, apreensivos, já comentavam entre si: “Isso já é loucura!” Por outro lado, adotara um luto fechadíssimo. Ofendeu-se, quando o sócio sugeriu, de boa-fé: “Põe fumo. Basta fumo. É mais moderno e não impressiona tanto.” Recuou, vários passos; enfureceu-se:
– Que negócio é esse de modernismo pra cima de mim? Tira o cavalo da chuva!…
O outro quis argumentar:
– Mas vem cá, Fulano, sou teu amigo, que diabo! Luto é uma coisa mórbida, doentia, desagradável!
Exultou, numa satisfação feroz:
– Pois que seja! Ótimo! Eu gosto de ser mórbido, eu pago pra ser doentio!…
O sócio saiu dali, assombrado. Foi dizer para as relações comuns: “Quero ser mico de circo se o nosso Moacir não está meio lelé!” Permitiu-se, ainda, o comentário profético: “Vai acabar rasgando dinheiro!”
O sócio
Chamava-se Escobar o sócio. Podia não ser muito amigo do Moacir, mas havia, entre os dois, vínculos mais eficazes que os simplesmente afetivos: os interesses comuns. E a verdade seja dita — o Moacir fazia uma falta imensa na firma. Ele era, no negócio, o gênio administrativo, ao passo que o Escobar contribuía com as ideias. Absorvido pela viuvez, ocupado em chorar a esposa, não tinha a cabeça para pensar na vida prática. Com razão, o Escobar alarmou-se: “Assim, não vais. Ou o Moacir volta, ou damos com os burros n’água!” Dedicou-se, então, a arrancar o sócio de suas pesadas atribulações. Todos os dias ia visitá-lo: “As coisas, lá, na firma, estão calamitosas!” O outro, de barba crescida, olhos incandescentes, cabeleira, um vago ar de Monte Cristo, resmungava: “Não interessa!” Insistia o Escobar, escandalizado: “Como não? Você tem interesses, deveres, responsabilidades!” Desta vez, Moacir não respondia. Imergia numa ardente e fúnebre meditação. Era óbvio que seu pensamento pairava em alturas inimagináveis. E, súbito, sem a menor relação com os assuntos do amigo, empreendia a exaltação da mulher. Era taxativo: “Tu não imaginas, tu não podes fazer a mínima ideia! Era a melhor mulher do mundo!” Dramatizava:
– Qualquer outra não chegava aos pés da minha! Não era nem páreo pra minha! – e, pondo a mão no braço do Escobar, acrescentava — Nunca mais, ouviste, nunca mais quero nada com mulher nenhuma. Te juro! Te dou minha palavra de honra!…
Escobar erguia-se, atônito:
– Toma jeito, Moacir! Nem tanto, nem tão pouco! Isso não é normal! Isso é contra a natureza!
Moacir, trêmulo, replicava:
– Pois eu quero que a normalidade e a natureza vão para os diabos que as carreguem!
Seu consolo, agora, era o mausoléu, à base de anjos, que mandara erguer para a falecida.
A ideia
Passaram-se mais dois meses e o Moacir continuava imprestável. Escobar quebrava a cabeça: “Tenho que descobrir um jeito, um modo, uma maneira de salvar essa besta!” Como era sujeito fantasista, que se envaidecia das próprias ideias, acabou descobrindo uma solução. Convocou uma mesa redonda de parentes do sócio. Avisou:
– O negócio está nesse pé: ou o Moacir vem trabalhar ou a firma vai direitinho para o beleléu. Vocês confiam em mim ou não?
A resposta foi reconfortante e unânime: “Confiamos.” Escobar pigarreou, para clarear a voz: “Eu tive uma ideia, que me parece genialíssima. Deve ser tiro e queda. E quero saber se vocês me autorizam, no escuro, a usar essa ideia. Autorizam?” Silêncio. Os parentes se entreolhavam. Um porta-voz indagou: “Podia-se saber que ideia é essa?” Respondeu o Escobar:
– Não. O segredo é a alma do negócio. E considero minha ideia boa demais para antecipá-la. Direi apenas que se trata de uma mentira. Mentira necessária e salvadora. Vocês me autorizam a mentir? Sim ou não?…
Novo silêncio e nova manifestação do porta-voz: “Sim.” Escobar esfregou as mãos, radiante: “Então vou mergulhar de cara.”
A mentira
Seguro de si, invadiu a casa do amigo e sentou-se, a seu lado; entrou, como ele próprio diria depois, de sola: “Olha aqui, Moacir: teu problema é mulher, percebeste? Tens que arranjar, imediatamente, uma ou várias mulheres. Ou então, estás liquidado.” O outro, que estava sentado, ergueu-se trêmulo: “Estás maluco? Doido?” Mas Escobar continuou num impressionante descaro, com a pergunta: “Topas uma farrinha, hoje? Conheço um lugar que tem um material de primeira. Olha! Cada pequena daqui!” Moacir disse, numa espécie de uivo: “Nunca! Nunca!” Chegara o grande momento. Escobar esmagou a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro; dizia, sem desfitar o amigo: “Tu sabes que tu és meu, do peito, não sabes?”
– Mais ou menos.
– Pois bem. Há uma coisa que tu precisas saber e que saberias mais dia menos dia. Vou te contar porque, enfim, não gosto de ver um amigo meu bancando o palhaço.
– Fala.
Escobar pousou a mão no ombro do sócio: “Tua mulher foi a São Paulo pra quê? Por causa de uma tia?” E o próprio Escobar, exultante, respondeu: “Não! Pra ver o amante! Sim, o amante!” Foi uma cena pavorosa. Quase, quase, o Moacir estrangula o amigo. Mas Escobar sustentou até o fim. Tornou sua mentira persuasiva, minuciosa, irresistível: “Eu mesmo vi os dois, juntos, em Copacabana…” Decorara, ao acaso, o nome de um dos passageiros do mesmo avião e o repetia: “Vê, na lista, se não está lá, vê! Inventou o pretexto da tia para acompanhá-lo!” Uma hora depois, Moacir arriava na cadeira, desmoronado; rosnava: “Cínica! Cínica!” Em pé, vitorioso, Escobar perguntava: “Topas agora a farrinha! Topas?” Ergueu-se, desvairado:
– Topo.
Os querubins
Foi, com o amigo, e já sem luta, ao lugar combinado, que era a casa de uma tal Geni. Saiu de lá, bêbado e quase carregado, ao amanhecer. No dia seguinte, sem dizer nada a ninguém, dirigiu-se ao cemitério. Durante uns quinze minutos, ficou vendo os operários que trabalhavam no mausoléu da finada Arlete. Era um mausoléu caríssimo, baseado numa alegoria de querubins, coroando a pureza da morta. Súbito, teve o acesso. Apanhou a picareta mais próxima e investiu, num desvario, fendendo os querubins de mármore. Quando o dominaram, o chão estava cheio dos anjos mutilados. Foi arrastado; e vociferava:
– Não pago mais as outras prestações dessa droga! Não dou mais um tostão! — esganiçava a voz — Minha mulher era uma cachorra!
Fonte: https://contobrasileiro.com.br/mausoleu-conto-de-nelson-rodrigues/.
Amei o conto! Mas deu uma peninha da falecida kkk.
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