O texto abaixo é de autoria de Lygia Fagundes Telles.
Para maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://www.ebiografia.com/lygia_fagundes_telles/.
Boa leitura!
A MORTE
Vou lhe contar meu sonho, um sonho tão bonito e que me fez tanto bem que não resisto ao impulso de passá-lo adiante, na esperança de que traga a alguém a metade — ao menos a metade! — da paz que me trouxe. Mas antes você vai me prometer que não procurará realizar aqui suas altas interpretações freudianas, não, nada disso, eu lhe peço, nada de complicar com simbolismos o que foi tão claro, tão nítido. Afinal, o que há de mais belo na vida — na vida e na morte — é o mistério. Desgosta-me essa preocupação constante de se racionalizar realidade e sonho, deixemos de lado as lúcidas análises, quando eu digo nuvem, é nuvem mesmo. Quando eu digo montanha, é montanha mesmo e não outra coisa. Fiquemos apenas na interpretação primária, do entendimento até das criancinhas.
Era noite e eu estava num campo que podia ser também um mar. Vi então que uma névoa fria foi subindo do chão ou da água, subindo rápida até meus joelhos, subiu mais e atingiu minha cintura, subiu ainda densa como uma onda e atingiu meu peito, mais um pouco e ei-la na altura do meu pescoço... Fui tomada de pânico, é a morte. Essa névoa é a morte, pensei erguendo angustiosamente a cabeça para fugir daquele denso vapor que eu sabia que ia me sufocar. A angústia foi rapidíssima porque logo a névoa atingiu minha boca, ultrapassou-a, foi além dos olhos... Então respirei tomada de uma infinita sensação de alívio como nunca senti igual. Passou, pronto, morri. Morri! Pensei na maior perplexidade. Mas como era fácil a morte! Como era fácil morrer!... E abri então os olhos deslumbrados para a manhã tão fina e tão leve como nunca tinha visto outra assim. Então era isso?... Tive vontade de rir de alegria, tão feliz me senti, mais leve ainda do que a manhã que me trespassava com sua luz como se eu fosse de vidro. A ansiedade, o medo, a aflição cederam lugar a uma calma tão absoluta que não entendi como pudera ter me afligido tanto antes.
Deitei-me de bruços no alto de uma montanha e fiquei vendo lá embaixo os densos rios que rolavam mansamente. Alguns cruzavam-se com outros e as águas avolumadas subiam então ondulantes contornando a base da montanha e formando em redor dela um imenso anel. Inclinei-me para ver melhor, não, não eram rios de água, eram rios de gente, infinitos rios humanos rolando tranquilos pela eternidade. São os mortos, pensei. São os mortos.
Fonte: https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/artigos/literatura/a-morte.
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