Novela de Janete Clair
Adaptação de Toni Figueira
CAPÍTULO 70
Participam deste capítulo
Otto - Jardel Filho
Paulus - Emiliano Queiroz
Lia - Arlete Salles
Conceição - Zeni Pereira
Catarina - Lídia Mattos
CENA 1 - FLORIANÓPOLIS - RUA - EXTERIOR - DIA
(continuação imediata da última cena do capítulo anterior)
OTTO DEU DOIS PASSOS E A NEGRA FALOU, NÍTIDO, PARA QUE TODOS OUVISSEM.
CONCEIÇÃO - Seu Otto! O coração que tá batendo no seu peito é do meu filho! Vicentão!
OTTO - (parou, como que fulminado, e olhou para trás) Que é que ela está dizendo?
PAULUS - É louca. Não ligue, Otto!
CONCEIÇÃO - (repetiu, cara-a-cara com o doente) Tô dizendo a verdade, seu Otto! O coração que lhe salvô a vida... é do meu filho! Tá me ouvindo? Do meu filho!
INÚTIL A FORÇA QUE PAULUS FAZIA PARA ARREDAR O HOMEM DO LOCAL. OTTO DESEJAVA CONHECER A VERDADE. CONTROLARA-SE ANTE A REVELAÇÃO DA NEGRA.
PAULUS - (insistia, suando) Vamos embora, Otto! Já disse. É uma louca!
OTTO MULLER ENCAMINHOU-SE PARA MAIS PRÓXIMO DA MULHER.
OTTO - Espere... espere... não entendi bem... você falou... que seu filho... o coração... bem... quem é seu filho?
CONCEIÇÃO - Já disse... o Vicente... Vicentão... que foi atropelado.
OTTO - Atropelado!
PAULUS - Otto, tenha paciência!
OTTO - (berrou) Pro diabo! Deixe a mulher falar!
VON MULLER, QUE HAVIA CHEGADO HÁ POUCO, ACOMPANHOU A DETERMINAÇÃO DO FILHO.
VON MULLER - Calma! Deixe o Sr. Otto ouvir a mulher!
OTTO - Continue, Conceição. Você afirmou... que o coração... do seu filho... que foi atropelado...
CONCEIÇÃO - Dr. Cyro tirou do peito dele pra colocar no seu peito!
INCONTINENTI O ALEMÃO COLOCOU A MÃO CONTRA O TÓRAX, COMO SE QUISESSE ARRANCAR UM ÓRGÃO PODRE. ARFAVA.
OTTO - No meu... o seu filho... o coração dele... está batendo... Dr. Cyro... quero dizer...
OTTO MULLER ENLOUQUECERA POR ALGUNS INSTANTES. O MUNDO PARECIA-LHE DE LUTO. NEGRAS AS ÁRVORES. NEGRO O CÉU. NEGRA A VIDA. AS PERNAS BAMBEAVAM. O CHOQUE FÔRA FORTE DEMAIS PARA UM HOMEM DOENTE.
PAULUS - Otto, que está sentindo?
OTTO - Droga! Cale a boca!
CONTINUAVA COM A MÃO CONTRA O PEITO. AS UNHAS FINCADAS CONTRA A PELE.
CONCEIÇÃO - Fui trabalhá na sua casa, logo depois... porque eu tinha certeza de tá perto do meu filho!
OTTO - O seu filho... eu... era o seu filho?
CONCEIÇÃO - É a impressão que eu tenho. Porque o sinhô vive às custas dele. Pra mim... o coração dele é que é vida! Sem ele, o sinhô era um home morto. Por isso... o sinhô é também meu filho!
OTTO - Eu... seu filho... eu... seu filho! (gritava como um alucinado, com as lágrimas correndo e brotando cada vez mais dos olhos azuis) O diabo é que é seu filho! O diabo! Não eu! (saiu correndo na direção do automóvel; ao longe, a voz histérica era ouvida pelos mineiros abismados) O diabo! O diabo é que é seu filho! O diabo!
PAULUS CORREU ATRÁS DO CHEFE, ALCANÇANDO-O ANTES QUE O HOMEM ABRISSE A PORTA DO CARRO.
PAULUS - Entre e se acalme, Otto!
OTTO - Toque! Depressa! Pro inferno!
CORTA PARA:
CENA 2 - MANSÃO DE OTTO MULLER - SALA - INTERIOR - DIA
A MÃO CONTINUAVA CRAVADA NO PEITO NU. OTTO RESPIRAVA FUNDO, ENOJADO COM O ÓRGÃO QUE TRAZIA DENTRO DE SI E LHE PERMITIA CONTINUAR VIVENDO. A FAMÍLIA REUNIRA-SE NA SALA DE ESTAR, A SEU CONVITE. HAVIA UM SILENCIO DE MOSTEIRO.
OTTO - Agora... que estão todos reunidos... me digam a verdade. Eu quero toda a verdade... sobre o coração que aquele médico do inferno... colocou no meu peito.
LIA ABRAÇOU-O AMOROSAMENTE, TENTANDO RETIRAR SUA MÃO DE CIMA DO PEITO CABELUDO E FORTE. UM TRAÇO VÍVIDO, CIRCULAR, ATESTAVA A OPERAÇÃO RECENTE.
LIA - O que podemos dizer, Otto? Só pretendíamos lhe salvar a vida!
OTTO - Então... é verdade... que o filho de Conceição... foi o doador? É verdade? Vocês sabiam! Todos sabiam!
CATARINA - (procurou uma fuga na mentira) Eu... eu não sabia, meu filho!
LIA - Sabíamos, sim. Eu sabia... ela sabia... todos nós tínhamos conhecimento... mas que importância tem isso? Você tem de se conformar! Era sua vida ou sua morte! Tem de acostumar com a ideia... de que o coração do homem que lhe deu a vida podia ser de qualquer raça – branco, amarelo, negro. Todo coração é cor de sangue, Otto! A vida não tem cor. E o que você deve a esse homem é isso: sua vida!
OTTO LEVANTOU-SE, SEM RETIRAR A MÃO DE SOBRE O PEITO. O PESCOÇO ESTICADO PARA CIMA, COMO QUE REPUDIANDO O CORAÇÃO QUE LHE BATIA MAIS ABAIXO.
OTTO - Isto pode não ter importância para ninguém! Tem para mim! E se vocês sabiam... conhecendo, como me conhecem... não deviam ter deixado!
LIA - Devíamos tê-lo deixado morrer, Otto?
OTTO - Era preferível!
LIA - Otto, crie juízo!
PAULUS - Estou absolutamente certo de que tudo foi obra daquele doutorzinho do demônio. Ele fez isso premeditadamente... para castigar você, Otto!
OTTO - (andando de um lado para o outro, inquieto) Eu também sei disso. Eu também sei. Eu sei. Também sei...
LIA - (cortou) Não faça disso um drama, Otto! Pelo amor de Deus!
PAULUS - Não, Lia. Otto tem razão. Dr. Cyro nunca devia ter feito isso, conhecendo Otto como conhecia!
LIA - Não jogue a culpa sobre o Dr. Cyro! Neste caso, eu tenho culpa também!
OTTO - (berrou como um doido) Saiam todos! Quero ficar só!
CATARINA PERMANECEU NA SALA COM O FILHO À SUA FRENTE. DEU UM PASSO NA INTENÇÃO DE ABRAÇÁ-LO.
OTTO - (recuou, possesso) Não me toque!
CATARINA - Otto, você enlouqueceu?
OTTO - Não me toque. Você não é digna de me tocar! Saia de perto de mim! Não me toque!
NUM ACESSO TOTAL DE INSANIDADE, O HOMEM PROJETOU-SE PORTA A FORA, DESAPARECENDO ENTRE AS ÁRVORES DO QUINTAL. A MÃO COLADA AO PEITO. A BOCA RETORCIDA, O NARIZ REDUZIDO A DUAS PEQUENINAS CRATERAS.
CORTA PARA:
CENA 3 - FLORIANÓPOLIS - PERIFERIA - ESTRADA - EXTERIOR - NOITE
HAVIA HORAS QUE OTTO MULLER DESAPARECERA COM O CARRO. A NOITE CHEGARA, QUANDO LARGOU O VISTOSO AUTOMÓVEL NA ESTRADA E EMBICOU POR UM CAMINHO ESTREITO, DE BARRO, LADEADO DE CAPIM E VEGETAÇÃO RASTEIRA. VIU A CABANA ENVOLTA NA ESCURIDÃO AMBIENTE.
CORTA PARA:
CENA 4 - CABANA DE CONCEIÇÃO - INTERIOR - NOITE
DENTRO DA CABANA, TUDO ÀS ESCURAS, APENAS O FOGO DE UM FOGÃO DE LENHA. A VELHA NEGRA PITAVA UM CACHIMBO DE BARRO, BALANÇANDO-SE NA CADEIRA DE PALHINHA FURADA.
O ALEMÃO EMPURROU A PORTA E ENTROU, SEM SE ANUNCIAR. CONCEIÇÃO ACENDEU UM FÓSFORO E RECONHECEU-O.
CONCEIÇÃO - O que o sinhô qué?
ELE ENTROU CALADO E SE SENTOU NUM BANQUINHO DE TRÊS PERNAS.
OTTO - Venha cá, Conceição!
A VELHA SE APROXIMOU, RECEOSA. OTTO LHE ESTENDEU A MÃO.
OTTO - Pode beijar a mão... do seu filho branco!
RESPEITOSAMENTE, A NEGRA BEIJOU-LHE A MÃO QUE ESTIVERA COMPRIMIDA CONTRA O PEITO.
CONCEIÇÃO - Meu filho branco!
OTTO - E agora... ouça o que seu filho branco tem a lhe dizer. Eu quero, eu exijo, entende? Você deve vingar o que fizeram com seu filho... meu irmão negro. Ele vive em mim... é verdade, mas ninguém... preste atenção... ninguém tinha o direito de tirar o coração dele, ainda vivo, para salvar a vida de outro...
CONCEIÇÃO - Sim, sinhô... sim, sinhô!
OTTO - Quem fez isso... fez com extrema crueldade... e desrespeito à vida humana. Quem fez, foi com a única intenção de se projetar... valendo-se da vida de seu filho... e da minha.
CONCEIÇÃO - Também acho.
OTTO - Por sensacionalismo, para aparecer... porque se julga um ser superior... um Deus. Está me entendendo, Conceição?
CONCEIÇÃO - Entendo... entendo... sim, sinhô!
OTTO - Você sabe de quem estou falando, não sabe, Conceição?
CONCEIÇÃO - Dr. Cyro Valdez!
OTTO - Isso mesmo. Cyro Valdez! Esse... esse demônio, Cyro Valdez. Esse feiticeiro... esse desgraçado!
LEVANTANDO-SE, O HOMEM DEU ALGUMAS PASSADAS PELO INTERIOR DO CASEBRE, VERIFICANDO AS MISERÁVEIS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DA MULHER.
CONCEIÇÃO VOLTOU A SEGURAR A MÃO DO HOMEM QUE ODIAVA OS NEGROS E DESPREZAVA OS POBRES.
CONCEIÇÃO - Seu Otto... eu num quero que o sinhô morra! Eu num quero!
OTTO - Eu não vou morrer! Eu tenho a vida de seu filho batendo aqui dentro de mim... Mas é preciso que aquele demônio morra! Ele não merece continuar vivendo... está me entendendo?
CONCEIÇÃO - (como que extasiada) Tô! Tô, sim sinhô.
OTTO MULLER FIXOU AS BRASAS VERMELHAS QUE ARDIAM NO FOGÃO, DANDO À CHOUPANA UM ASPECTO MÍSTICO. A LUZ DO FOGO REFLETIA-SE NO ROSTO TRANSFIGURADO DO ALEMÃO. A CALVÍCIE DAVA-LHE A APARÊNCIA DE UM SER DO OUTRO MUNDO.
OTTO - Instigue os outros. Denuncie o crime de Cyro Valdez. Peça ajuda... fale com todos... reúnam-se contra esse demônio. Expulsem-no daqui... ou o matem! Ande, Conceição, vingue-se! Vingue-se, mulher, ande! É o coração de seu filho, meu irmão negro, quem manda!
A MULHER APANHOU UM XALE E SE ENVOLVEU COM ELE. ESTAVA TRANSTORNADA PELO ACONTECIMENTO E PELA VISÃO DEMONÍACA DO EX-PATRÃO.
CONCEIÇÃO - Sim, sinhô... eu tenho ajuda dos mineiros tudo em peso... da Panorama. Tá todo mundo revoltado.
OTTO - Aproveite-se dessa revolta... vingue-se!
SEM MAIS CONVERSA, CONCEIÇÃO DEIXOU O CASEBRE, PERDENDO-SE NA ESCURIDÃO DO EXTERIOR. OTTO FICOU. SENTOU-SE NA CADEIRA DE BALANÇO E AGUARDOU
FIM DO CAPÍTULO 70
... E NA PRÓXIMA QUINTA, CAPÍTULO INÉDITO!
Otto é que é o ser demoníaco dessa história! Mas, eu já esperava uma reação forte dele quando descobrisse a verdade. Muito bom esse capítulo!
ResponderExcluirOtto é mesmo um nazista. Isso que ele fez lembrou o ardil deles, convencer o povo a fazer o que queriam. Pobre Conceição!
ResponderExcluirPois é, amigos, e os desdobramentos dessa descoberta vão trazer muito sofrimento e dor para Cyro e Ester. Aguardem!
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