O
texto abaixo é da autoria de Ferreira Gullar.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=16718&sid=1042.
Boa
leitura!
UMA
VIAGEM INESQUECÍVEL
O
avião é o mais seguro dos meios de transportes, dizem, e eu admito, embora
prefira viajar de automóvel.
É
um problema psicológico, sem dúvida, mas que posso fazer? Quando o carro
balança ou estremece, não me aflijo, pois sei que, estando no chão, não vai
cair; mas, no avião, a 10 mil metros de altura, entro em pânico. Sei que não
cai, mas não adianta sabê-lo - entro em pânico assim mesmo.
Fazia
quase três anos que não viajava de avião, negando-me a aceitar qualquer convite
que me obrigasse a isso. E tudo por causa de dois sustos seguidos, na
ponte-aérea Rio-São Paulo. O primeiro deles, vinha para o Rio de noite e, pouco
antes de chegarmos, o avião deu uma balançada tão brusca que fez gente gritar
assustada; a impressão era de que íamos nos precipitar no chão, mas não
aconteceu nada; quando o avião pousou, os passageiros bateram palmas, não sei
se ao comandante ou à providência divina. Mas, recuperado do susto, desci as
escadas do avião e senti pena do pessoal que, em fila, esperava para embarcar.
Aliviava-me pensar que, só dali a um mês, teria que repetir aquela viagem.
Sucede
que, para os assustados, um mês passa rápido, e assim foi que, quando dei por
mim, estava de novo voando para São Paulo. Com 15 minutos de vôo, o comandante
informou que o aeroporto de Congonhas estava fechado e assim me vi rodando sob
a tempestade durante 20 minutos antes de conseguir pousar. Salvo do desastre,
prometi a mim mesmo que nunca mais poria o pé dentro de um avião. Desde aquele
dia, todas as vezes que viajei para São Paulo fui de carro e me dei bem. O
chofer apanhava-me à porta de casa e me deixava à porta do hotel. Além de
viajar com a alma em paz, não tinha que enfrentar as filas e atrasos nos
aeroportos. Cinco horas e meia de carro permitiam-me ler e escrever. Até um
livro de poemas para crianças escrevi numa dessas viagens.
Anos
se passaram, esqueci aqueles sustos e, talvez por isso, aceitei o convite para
ir à Espanha fazer conferências e leituras de poemas. Isso foi bem antes da
tragédia de Congonhas. Cláudia, que gosta de viajar e não tem medo de avião,
achou ótimo e, assim, irresponsavelmente, deixei-me encantar pela possibilidade
de rever Madri e, finalmente, conhecer Sevilha e Santiago de Compostela. Além
do mais, ficaríamos na Residencia de los Estudiantes, onde residiram García
Lorca, Juan Ramón Jiménez e Rafael Alberti. Embalado em sonhos, vi aproximar-se
a data em que voaria para terras da Espanha. É certo que, em alguns momentos,
acudia-me a pergunta: "E você vai estar dentro de um avião durante dez
horas ininterruptas?". Estremecia de medo, mas desviava o pensamento, já
que, àquela altura, não poderia voltar atrás.
E
foi assim que, certa tarde de maio, Cláudia e eu, arrastando maletas, chegamos
ao Aeroporto Internacional Tom Jobim: embarcaríamos às 21h30. Logo nos deparamos
com uma fila enorme de passageiros que tomariam o mesmo avião. Sem muita
demora, o alto-falante anunciou que o nosso vôo para Madri atrasaria cerca de
uma hora.
Começou
a encrenca, disse a mim mesmo, e seguimos para o restaurante a fim de gastarmos
o tempo. Estava lotado mas, por sorte, logo conseguimos sentar. E ali ficamos,
à espera da chamada para o embarque, cujo atraso já se aproximava das duas
horas. "Para que me meti nisto?", me perguntava eu, já dentro do
avião, que não se movia. Finalmente, uma voz informou, em espanhol, que
deveríamos esperar mais uma hora, aguardando autorização das autoridades
brasileiras.
Afinal,
decolamos. Meu relógio marcava meia-noite e meia, três horas de atraso. Agora,
devíamos subir pela costa brasileira, cruzar o Atlântico, passar pelo norte da
África, transpor o Mediterrâneo e chegar a Madri. Após o jantar, as luzes do
avião se apagaram e iniciou-se a mais longa noite de minha vida, dentro de uma
espécie de torpedo voador que estremecia a cada instante. Das dez horas de
viagem, seis foram de turbulências. Afinal, o avião pousou e eu, zonzo de sono,
fui esperar pelas bagagens.
Os
dias que se seguiram foram confortadores e inesquecíveis. Ganhamos novos
amigos, tanto espanhóis como brasileiros, que nos fizeram olhar a Espanha de
uma nova maneira. Só que, de vez em quando, num relance, dizia a mim mesmo:
"O diabo é ter que entrar naquele avião rumo aos caos aéreo
brasileiro". E eu ainda não conhecia a opinião do presidente da Infraero:
"Avião que não cai é o que está no chão". Pois é, no chão ficarei.
Que texto legal! Gostei muito de ler.
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