quinta-feira, 27 de agosto de 2015

SESSÃO LEITURA - CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO - RUBEM BRAGA

O texto abaixo é da autoria de Rubem Braga.
Para maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp.
Boa leitura!

Conversa de compra de passarinho

Entro na venda para comprar uns anzóis, e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: "Quanto?" O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro: "Quarenta". O homem da venda não responde, vira a cara.
Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:
- Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa; o velho lhe serve cachaça, recebe, dá o troco, volta-se para mim: "O senhor quer chumbo também?" Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:
- Quer vinte e cinco pode botar lá dentro.
O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:
- Quanto é o coleiro?
- Ah, esse não tenho para venda, não...
Sei que o velho está mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: "O senhor dá trinta..." O velho cala-se, minha nota na mão:
- Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
Fico calado algum tempo. Ele insiste: "O senhor diga..." Viro a minha cachaça, fico apreciando o coleiro.
- Não quer vinte e cinco vá embora, menino.
Sem responder o menino cede. Carrega as achas de lenha lá para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:
- Passarinho dá muito trabalho...
O velho atende outro freguês, lentamente.
- O senhor querendo dar 500 cruzeiros, é seu.
Por trás dele o pescador de bigodes brancos me faz sinal para não comprar. Finjo espanto:
"QUINHENTOS cruzeiros?"
- Ainda a semana passada eu rejeitei 600 por ele. Esse coleiro é muito especial.
Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando suas especialidades.
Faço uma pergunta sorna: "Foi o senhor quem pegou ele?" O homem responde: "Não tenho tempo para pegar passarinho".
Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido por aquele coleiro especial?
- No Rio eu compro um papa-capim mais barato...
- Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
- Mas QUINHENTOS cruzeiros?
- Quanto é que o senhor oferece?
Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com a voz fria, seca: "Dou 200 pelo coleiro, 50 pela gaiola".
O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: "Por 300 cruzeiros o senhor leva tudo".
Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho.
Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.
- O senhor não leva o coleiro?
Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no Inferno, o burrinho, o menino e o coleiro vão entrar no Céu - trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

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