O
texto abaixo é da autoria do escritor uruguaio Horácio Quiroga.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&Template=../livros/layout_autor.asp&AutorID=638060.
Boa
leitura!
À
DERIVA
O
homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no pé. Saltou
para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a jararacuçu que se recolhia
sobre si mesma; preparava outro ataque.
O
homem lançou uma rápida olhada a seu pé, de onde duas gotinhas de sangue
engrossavam dificultosamente, e então sacou o facão da cintura. A víbora viu a
ameaça, e fundiu mais a cabeça no centro mesmo de sua espiral; porém o facão
caiu sobre ela, deslocando-lhe as vértebras.
O
homem abaixou-se para olhar a mordida, limpou as gotinhas de sangue, e durante
algum tempo contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos violeta, e
começava a expandir-se por todo o pé. Apressadamente, amarrou o tornozelo com o
lenço que trazia amarrado à cintura, e seguiu pela picada até seu rancho.
A
dor no pé aumentava, e de repente, o homem sentiu dois ou três fulgurantes
pontadas que como relâmpagos haviam-se irradiado da ferida, até a metade da
panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma sede metálica na garganta,
seguida de uma sede ardente, arrancou-lhe outro palavrão.
Chegou
finalmente ao rancho, e abraçou a roda do moinho. O dois pontinhos violeta
desapareciam agora na monstruosa inchação do pé inteiro. Parecia-lhe
enfraquecida, e a ponto de ceder, de tão tensa. O homem quis chamar sua mulher,
mas sua voz se quebrou num grunhido rouco de garganta ressecada. A sede o
devorava.
—
Dorotea! — conseguiu lançar um grito. — Me dá cachaça!
Sua
mulher correu com um copo cheio, que o homem sorveu de três tragos. Porém não
havia sentido gosto algum.
—
Te pedi cachaça, não água! — rugiu de novo. — Quero cachaça!
—
Mas é cachaça, Paulino! — protestou a mulher, espantada.
—
Não, me deste água! Quero cachaça, te digo!
A
mulher correu outra vez, voltando com o garrafão. O homem bebeu um atrás do
outro três copos, porém não sentiu nada na garganta.
—
Bom, isto está feio... - murmurou então, olhando seu pé lívido e já com um
brilho gangrenoso. Sobre a intensa atadura do lenço, a carne transbordava como
uma pavorosa morcela.
As
dores fulgurantes sucediam-se em relâmpagos contínuos, e chegavam agora à virilha.
Além disso, a atroz sequidão da garganta que o esforço parecia esquentar mais,
aumentava. Quando pretendia encorpar-se, um fulminante vômito manteve-o meio
minuto com a testa apoiada na roda de madeira.
Mas
o homem não queria morrer, e descendo à costa, subiu em sua canoa. Sentou-se na
popa e começou a remar até o centro do Paraná. Ali, a correnteza do rio, que
nas imediações do Iguaçu corre por seis milhas, o levaria antes de cinco horas
a Tacurú-Pucú.
O
homem, com fatigada energia, pode efetivamente chegar até o meio do rio; no
entanto, ali suas mãos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e por causa de
um novo vômito — de sangue esta vez —, dirigiu um olhar ao sol que transpunha a
montanha.
A
perna inteira, até metade da coxa, era já um pedaço disforme e duríssimo que
rompia a roupa. O homem cortou a ligadura e abriu a calça com a faca: a parte
inferior desbordou inchada, com grandes manchas lívidas e terrivelmente
dolorosas. O homem pensou que não poderia jamais chegar sozinho a Tacurú-Pucú,
e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, embora fizesse muito tempo
estivessem intrigados um com o outro.
A
correnteza do rio precipitava-se agora para a costa brasileira, e o homem pode
facilmente atracar. Arrastou-se pela picada costa acima, porém a vinte metros,
exausto, ficou estendido de costas.
—
Alves! — gritou com a força que pode; e prestou atenção em vão.
—
Compadre Alves! Não me negue este favor! — clamou de novo, levantando a cabeça
do solo.
No
silêncio da selva, não se ouviu um só rumor. O homem teve ainda forças para
chegar até sua canoa, e a correnteza, apoderando-se dela de novo, levou-a à
deriva.
O
Paraná corre ali no fundo de uma imensa depressão, cujas paredes, com altura
para lá de cem metros, estreitam funebremente o rio. Desde as margens cercadas
de negros blocos de basalto eleva-se o bosque, negro também. Adiante, às
costas, sempre a eterna muralha lúgubre, em cujo fundo o rio afunilado se
precipita em incessantes erupções de água lodosa. A paisagem é agressiva,
contudo, sua beleza sombria e calma cobra uma majestade única.
O
sol havia já havia caído, quando o homem, estendido no fundo da canoa, teve um
violento calafrio. E, de repente, com assombro, pôs na vertical pesadamente a
cabeça: sentia-se melhor. Somente a perna lhe doía, a sede apagava-se, e seu
peito, livre já, abria-se em lenta inspiração.
O
veneno começar a ir-se, não havia dúvida. Achava-se quase bem, e embora não
tivesse forças para mover a mão, contava com a vinda do orvalho para repor-se
todo. Calculou que antes de três horas estaria em Tacurú-Pucú.
O
bem-estar progredia e, com ele, uma letargia cheia de recordações. Não sentia
mais nada na perna nem no ventre. Viveria ainda seu compadre Gaona em
Tacurú-Pucú? Por acaso veria também seu ex-patrão, mister Dougald, e o
encarregado de obras?
Chegaria
repentinamente? O céu, a poente, abria-se agora num resplendor de sangue, e o
rio se havia avermelhado também. Da costa paraguaia, já em trevas, a montanha
deixava cair sobre o rio sua frescura crepuscular, em penetrantes eflúvios de
flores de laranjeiras e mel silvestre. Um casal de araras cruzou o céu muito
alto e em silêncio até o Paraguai.
Lá
embaixo, sobre o rio de ouro, a canoa derivava velozmente, girando de tempos em
tempos sobre si mesma, ante a erupção de um remoinho. O homem que ia nela se
sentia cada vez melhor, e pensava no tempo justo em que havia passado sem ver
seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez, não tanto. Dois anos e nove meses?
Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.
De
repente, sentiu que estava gelado até o peito. Que seria? E a respiração...
Ao
madeireiro de mister Dougald, Lorenzo Cubilla, havia conhecido em Puerto.
Esperança em Sexta-feira Santa...Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira...
O
homem estendeu lentamente os dedos da mão.
—
Uma quinta-feira...
E
parou de respirar.
O
conto “À Deriva” foi extraído do livro “Cuentos de Amor, de Locura y de
Muerte”, publicado em 1917. A tradução livre é de Jádson Barros Neves.
Esperava outro final, mas a história é linda!
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