A
crônica abaixo é de autoria de Armando Nogueira.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://terceirotempo.bol.uol.com.br/que-fim-levou/armando-nogueira-2295.
Boa
leitura!
PELADAS
Esta
pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que
passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca
silêncios num banco sem encosto.
E,
no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho:
“Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado
de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo
se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma
suada vaquinha.
Oito
de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem
camisa.
Já
reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito
compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de
título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose
adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em
compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá,
corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de
um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela
calçada. Parece um bichinho.
Aqui,
nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal,
trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos
ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA — Especial”. Uma bola assim, toda de
branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais
seria barrada em recepção do Itamaraty.
No
entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo,
disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela
sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha
é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona,
que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova
saída.
Entra
na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com
cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma
pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo
está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O
espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a
primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o
coração de uma criança.
Os
melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
Que linda crônica! Gostei muito de ler.
ResponderExcluir