O
texto abaixo é de autoria de Cora Coralina.
Para
maiores informações sobre a autora, favor acessar: http://pensador.uol.com.br/autor/cora_coralina/biografia/.
Boa
leitura!
OS
MENINOS VERDES
—
E a estória dos Meninos Verdes, vovó?
—
Então vocês querem saber a estória dos Meninos Verdes? Mas não é uma estória, é
um acontecido. Me pediram para não divulgar o assunto, esperando para ver oque
acontece, porque o caso é muito sério! Vou contar só pra vocês. Foi assim:
“No
quintal da Casa Velha da Ponte sempre tivemos horta com verduras, legumes.
Também pomar com árvores de frutas variadas e jardim com flores.”
O
quintal é o mundo de seu Vicente, um homem que viveu sempre plantando,
cultivando, colhendo. É prestadio e metediço.
Certo
dia, entre plantas que nascem lá, boas ou más, apareceram duas plantas
diferentes. Seu Vicente estranhou, queria arrancá-las. Eu disse:
—
Não, deixe crescer, vamos ver o que sai daí.
Com
o passar dos dias, as plantas se desenvolviam de forma estranha, não eram
conhecidas de ninguém.
Certo
foi que um dia, de manhã cedo ainda, no tempo de frio, vem seu Vicente com uma
cara de espanto e me diz:
—
Dona Cora, Dona Cora, vem ver uma coisa!
Eu
estava acendendo o fogo para fazer o café e disse:
—
Espera um bocado, depois do café eu vou.
—
Não, não, a senhora vem já. Venha ver!
Impressionada
com aquele chamado urgente fui até o quintal. E lá, debaixo das tais plantas
estranhas, vi umas coisinhas que se mexiam, buliam. Umas coisas vivas.
Na
primeira olhada não pude definir o que seria aquilo. Pareciam bichos, filhotes
de passarinho, qualquer coisa que tivesse caído por ali, que tivesse despencado
de um galho de árvore. E tinham se juntado na sombra daquelas duas plantas.
Depois
me abaixei e examinei melhor. Eram seres vivos, com todas as formas de crianças
em miniatura! Tomei um nas mãos, senti que era gelatinoso, com movimentos muito
vivos, como querendo escapar da minha mão.
Assombrada,
achei que precisava retirá-los da terra, porque eles estavam bem sujinhos!
Seu
Vicente apanhou o balaio que ele usa para os trabalhos no quintal.
Forrou-o
com panos e cobertas velhas e acomodou aqueles seres.
Eram
sete, e, achando que eles estavam com frio, seu Vicente rebuçou.
Examinando
de perto, perguntou:
—
É bicho, é passarinho ou é gente?
—
Velho isso é uma coisa que nós vamos indagar, e não fale pra ninguém!
—
É salta-caminho! — falou assombrado.
—
Cubra com mais um cobertor e leve para o outro lado da casa. Depois do café vou
resolver o que se faz.
Voltei
para o fogão, fiz o café, e comecei a imaginar o que seria aquilo. Fui vê-los.
Estavam juntinhos e já não tremiam.
Tomei
um nas mãos e vi que tinha a cabeça verde, olhos verdes, boquinha verde,
dentinhos verdes em ponta, orelhas verdes e o cabelinho como de milho, mas
verde. Os pés e as mãos tinham unhas como garras de passarinho. Na barriguinha
lisa, o umbigo era apenas uma manchinha verde mais escura.
Eram
dois grupos. Um grupo tinha a cabecinha chata e o cabelo pendendo para baixo. O
outro grupo tinha cabeça pontuda, cabelo em ponta, tendendo para cima. Os
sinais sexuais estavam um tanto indefinidos, mas notava-se a diferença entre um
grupo e outro.
Tornei
a agasalhá-los e disse:
—
Velho, precisamos dar alimento pra eles.
Seu
Vicente, sempre pronto a dar comida a todo bicho que aparece, falou:
—
Vou fazer uma papa de farinha!
—
Não, não faça de farinha, vou fazer mucilagem.
Seu
Vicente alimentou os serezinhos às dedadas — à moda nordestina — passando na
boca e empurrando. Assim, ele e os serezinhos ficaram todos lambuzados.
Aí,
considerando que aquele mistério tinha que ser mantido em segredo, pensei que
era muito pesado para mim só. Fiz um chamadinho para uma vizinha muito boa, que
veio à minha casa. Contei a ela o acontecido.
—
Preciso de sua ajuda.
Ela
ficou admirada quando viu o conteúdo do balaio, e compreendeu a necessidade de
guardar segredo.
—
Dona Cora! Vou fazer uns macacõezinhos de flanela, parece que eles estão com
frio.
Costurou
quatro macacões rosa e três azuis, achou que eram meninas e meninos. Eles
aceitaram as roupas.
Mais
tarde, quando voltamos lá, eles tinham estraçalhado as flanelas com os
dentinhos. Continuavam juntinhos, meio tremendo.
Depois
passaram a não querer mais a mucilagem. Vi que em vez de aumentarem de peso e
de tamanho estavam diminuindo.
Aí
eu pensei: “E agora, deixar morrer à míngua não é possível”.
Minha
vizinha sugeriu falar com seu irmão, um médico conceituado.
Dr.
Passos veio mais tarde, olhou, espantou-se, e deu uma orientação muito
inteligente:
—
Tudo é verde neles. Como estão rejeitando alimento, vamos colorir a mucilagem
de verde e vamos vesti-los de verde.
Minha
vizinha costurou macacõezinhos verdes e passamos a alimentá-los com sopas e
purês de espinafre, repolho, alface, agrião, chicória. Eles gostaram do verde
das comidinhas e das roupas.
Seu
Vicente transformou o balaio numa casinha, enfeitada de folhas verdes, com
camas-beliche, cadeirinhas e mesinhas, tudo pintadinho de verde.
Aí
a coisa foi melhorando, começaram a se desenvolver e perderam aquele aspecto
gelatinoso.
Foram
se firmando, a gente via que eles tinham mais vitalidade.
Brincavam
entre si, e quando um começava a chiar, os outros respondiam num chiado
diferente. Numa hora parecia que aquele chiado era uma risada, noutra, um grito
ou uma conversinha entre eles. Agarrando a beira do balaio, saíam,
espalhando-se pela casa. Batizei-os como Meninos Verdes.
Muito
ocupada com meus doces, um dia, mexendo com os tachos, um dos meninos começou a
subir pela minha perna, pela minha roupa e, quando vi, estava no meu pescoço,
olhando para dentro do tacho. Passei uma dedada de açúcar pela boquinha dele.
Gostou.
“Oi,
que danado!”
Não
podia mantê-los em minha casa, sempre com a porta da rua e a porta do meio
abertas. Passei a manter fechada a porta do meio.
O
tempo passando, o problema se agravando, os meninos cada vez mais vitalizados.
Seu Vicente cansado, sentindo-se importunado.
—
Dona Cora, olhe o que os danados estão fazendo comigo, minhas mãos arranhadas,
eu sem tempo até para fazer um cigarro de palha. A senhora vai fazer criação
desses salta-caminhos?
—
Paciência, isso veio para mim, mas não tenho como resolver.
—
Deixe, Dona Cora, num dia de chuva, coloco todos numa caixa de papelão e solto
rio abaixo.
—
Velho, não fale isso outra vez. É um crime. Os Meninos Verdes vieram para mim.
Tenho de resolver o problema.
Pedi
socorro para minha boa vizinha:
—
Converse com a mulher do Presidente da República. É criatura muito humana, já
esteve aqui na cidade, conhece a senhora.
Carteei
com a Primeira-Dama. Em resposta dizia-se muito admirada e pedia fotos. O filho
de minha vizinha tirou fotos muito nítidas. Eu as enviei.
A
resposta chegou antes do que eu esperava: ia mandar buscar os Meninos Verdes.
Eu
disse a ela que o carro deveria parar longe de casa para não despertar
suspeitas.
Os
portadores — um médico, uma enfermeira e uma assistente social — chegaram como
se fossem comprar doces. Ficaram pasmos, absurdos com o que viam!
Meus
Meninos Verdes foram acomodados pela enfermeira em uma caixa acolchoada e
rumaram para o Planalto.
Assim,
me achei aliviada, mas não liberta. Espiritualmente estava ligada a eles e já
sentindo sua falta. Acompanhava à distância a nova vida dos Meninos Verdes.
Quando
chegaram ao Palácio, foi um espanto geral. O Presidente mandara construir, na
parte do palácio reservada à família, uma casa especial com auditores e
visores. Quando não estava ocupado, gostava de sentar-se na frente da casa dos
Meninos Verdes.
Uma
enfermeira os acompanhava permanentemente. A alimentação estava a cargo da
nutricionista. Pedagogos, psicólogos e antropólogos faziam parte da equipe de
estudos. Os serezinhos cresciam devagar.
O
Presidente da época foi substituído, e todos os presidentes depois dele
continuaram a cuidar dos meninos.
Foi
quando resolveram criar a Cidade dos Meninos Verdes, um polo de turismo que
seria mais interessante que a Disneylândia, na América do Norte. Chamaram um
grande arquiteto para projetar a cidade.
Quando
estava para iniciar-se a construção da cidade, cientistas brasileiros
convidaram cientistas estrangeiros para conhecerem aqueles seres que
surpreendiam a todos pelo seu desenvolvimento.
Vieram
cientistas de muitos países, e ficaram assombrados, sem saber o que eram e de
onde tinham vindo aqueles serezinhos. Examinaram, fotografaram, radiografaram,
observaram, indagaram.
Mas
a ideia de criar uma Cidade dos Meninos Verdes como atração turística não foi
aprovada. Os serezinhos eram um fenômeno científico obscuro, de imprevisível
futuro, assim, decidiram continuar observando suas vidas, o que poderia
significar grandes avanços na Ciência.
Países
estrangeiros ofereceram tecnologia científica para acompanhar o caso e queriam
levar os Meninos Verdes para a Europa, Ásia, Estados Unidos.
Ofereceram
até indenização!
O
Brasil rejeitou a proposta.
O
governo aceitou apenas a colaboração científica, técnica, cultural de todos os
países do mundo, declarando-os Meninos Verdes patrimônio universal da Ciência.
Acompanho
à distância meus Meninos Verdes. Estão crescendo devagarinho, dão sinais de
inteligência e vivacidade, já estão com 12 centímetros!
Mais um lindo texto de Cora Coralina! Amei ler.
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