O
texto abaixo é de autoria de Rachel de Queiroz.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.releituras.com/racheldequeiroz_bio.asp.
Boa
leitura!
O
ATEU
Era
uma vez, já faz muito tempo, havia um homem que era ateu. Naquele pequeno
povoado onde morava não existia nenhum outro ateu igual a ele, de forma que o
coitado vivia em grande isolamento. Mas era orgulhoso e não se queixava, mesmo
quando se sentia mais solitário, por exemplo nos dias de domingo em que todo o
povo da terra ia ouvir missa e ele ficava vagando entre as árvores da praça; ou
na véspera de Natal, quando as pessoas só se preocupavam com o Presépio e com a
Missa do Galo. Tocavam os foguetes, os sinos repicavam, todo o mundo se
alegrava e ia cear, mas o ateu declinava os convites que lhe faziam: não tendo
rezado não se achava com direito à ceia, pois ele com ser ateu não deixava de
ser honesto; trancava-se em casa e ficava de vela acesa, lendo um dos seus
livros de ateísmo. E, se alguma das pessoas vindas de longe para assistir às
festas naquele povoado, estranhava a silhueta do homem solitário a ler junto à
fresca da janela e perguntava por que não estava ele na missa ou na ceia, o
povo da terra explicava:
–
Ele não pode, coitado. É o nosso ateu.
No
mais, o ateu vivia como os outros. Trabalhava no seu ofício, plantava couve e
orégano no quintal, criava dois cachorros perdigueiros e, à boca da noite,
tomava parte na roda dos conterrâneos que conversavam sentados nos degraus do
chafariz. E quando a conversa tocava em assunto de religião sempre havia um a
observar:
–
Você, que é ateu…
Mas,
então chegou um ano em que o nosso ateu, por diversas razões, parece que deu
para se sentir ainda mais só. Esqueci de contar que ele era solteiro. Embora a
cidade alimentasse um certo orgulho em possuir aquela singularidade – um ateu
público-, as moças não sentiam coragem de casar com um homem assim marcado e
que, mal expirasse, iria decretado para o inferno. Veio uma peste canina e
matou os dois cachorros perdigueiros; parecia castigo para mais agravar a
solidão do pobre ateu. E os livros dele, de tão lidos e relidos, já não lhe
contavam mais nada. De dia, o trabalho ajudava a fazer companhia; e de tarde
tinha os amigos. Mas nessas eras antigas os homens eram muito religiosos e
grande parte do tempo levavam na igreja: de manhã era a missa, de tarde o terço,
de noite a novena e, a qualquer pequena festa, as procissões. E nessas horas
numerosas em que toda a gente se metia na igreja, o ateu saía de casa, sentava
à sombra do cruzeiro, sentia o cheiro bom do incenso queimando nos turíbulos, e
lhe dava uma certa vontade de entrar, de ver o dourado nas vestes dos santos, e
escutar o belo latim do padre. Mas continha-se; que diria o povo se o visse lá
dentro?
Outras
ocasiões de inveja tinha-as nos dias de procissão, quando todos os seus amigos
vestiam uma opa de seda colorida e iam carregar o andor, as varas do pálio ou
os tocheiros acesos, e ele ficava nas esquinas, as mãos penduradas dos
cotovelos, na sua roupa velha do diário. Então voltava a trabalhar, embora
fosse dia de festa, e ninguém se escandalizava com isso pois todos compreendiam
a sua condição de ateu, embora lhe lamentassem a desventura.
E
foi aí, na altura do fim desse ano, apareceu uma moça – por sinal sobrinha do
padre – que se apaixonou pelo ateu. Como começou ninguém sabe, mas o amor tem
disso: vai passando uma moça pela rua, vê um homem que toda a vida viu, e de
repente sente um baque no peito e está amando aquele homem. Ele a princípio
ficou apenas enternecido ante os olhos que ela lhe punha, tão doces e amigos;
mas depois, descobrindo-se amado – ele, a quem ninguém amava-, começou a amá-la
também.
E
todas as pessoas do lugarejo lamentavam os namorados, sabendo que podiam pensar
em casamento, que o padre não iria entregar a sua ovelhinha inocente às mãos de
um ateu confesso.
Assim
chegou o Natal e foi arrumando o Presépio e começou a romaria dos visitantes
que iam beijar o pé do Menino. E a namorada do ateu deu de teimar que ela a
acompanhasse nessa visita obrigatória. Ele dizia que não e só com muito custo
consentiria em entrar na sala e ficar a um canto, enquanto ela fizesse a sua
devoção. Mas assim a rapariga não aceitava:
–
Que é que custa um beijo? Você não me beija?
Ele
sorria:
–
Mas você é gente, é de carne e eu lhe quero bem. O Menino, como vocês chamam, é
um bonequinho de louça.
A
moça argumentou que de louça também era a xícara que ele levava aos lábios e
não lhe fazia mal nenhum. Ele então alegou o seu amor-próprio. Afinal era o
ateu dali, o único. A moça nesse ponto começou a chorar, a dizer que se ele
tinha mais amor-próprio do que amor a ela estava tudo acabado. O ateu se
assustou com a ameaça e consentiu, embora constrangido. Acompanhou à moça
triunfante; entrou na fila atrás dela, enfrentou os olhares de espanto. De um
em um, os devotos paravam diante da manjedoura, dobravam o joelho, rezavam uma
jaculatória e beijavam o pé do Menino. Chegou a vez da namorada que, feita a
sua reverência e dado o beijo, virou-se e sorriu para o seu bom ateu, a fim de
o animar. Ele correu o olhar em torno e viu em todos o mesmo ar de animação e esperança.
Resolveu-se: dobrou o joelho áspero, curvou a cabeça sobre os pezinhos do
santo. E sentiu debaixo dos lábios, não o frio da porcelana, mas o calor da
carne, o movimento, a pulsação da carne. Ergueu os olhos assombrado. Encarou o
Menino e viu que Ele lhe sorria radioso, e dos olhos lhe saía uma luz que
jamais olhos de louça teriam.
Dizem
que o ateu caiu no chão, com os braços em cruz, chorando e adorando. E naquela
noite de Natal acabou-se o único ateu do povoado.
Mas
dizem também que ele não se casou com a namorada. Não podia, pois largou tudo e
foi ser frade.
Amei este conto! Fiquei aqui, imaginando a solidão do ateu, principalmente quando ficou sem os cachorros. O final foi feliz, menos para a namorada rsrs.
ResponderExcluirBem engraçado esse conto kkkk
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