O
conto abaixo é de autoria de Nelson Rodrigues.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/nelson_rodrigues/.
Boa
leitura!
DELICADO
Primeiro,
o casal teve sete filhas! O pai, que se chamava Macário, coçava a cabeça, numa
exclamação única e consternada:
—
Papagaio!
Era
um santo e obstinado homem. Sua utopia de namorado fora um simples e exíguo
casal de filhos, um de cada sexo. Veio a primeira menina, mais outra, uma
terceira, uma quarta e outro qualquer teria desistido, considerado que a vida
encareceu muito. Mas seu Macário incluía entre seus defeitos o de ser teimoso.
Na quinta filha, pessoas sensatas aconselharam: “Entrega os pontos, que é mais
negócio!”. Seu Macário respirou fundo:
—
Não, nunca! Nunca! Eu não sossego enquanto não tiver um filho homem!
Por
sorte, casara-se com uma mulher; d. Flávia, que era, acima de tudo, mãe. Sua
gravidez transcorria docemente, sem enjoos, desejos, tranquila, quase eufórica.
Quanto ao parto propriamente, era outro fenômeno estranhíssimo. Punha os filhos
no mundo sem um gemido, sem uma careta. O marido sofria mais. Digo “sofria
mais” porque o acometia, nessas ocasiões, uma dor de dente apocalíptica, de
origem emocional. O caso dava o que pensar, pois Macário tinha na boca uma
chapa dupla. Quando nasceu a sétima filha, o marido arrancou de si um suspiro
em profundidade; e anunciou:
—
Minha mulher, agora nós vamos fazer a última tentativa!
NOVO
PARTO
No
dia que d. Flávia ia ter o oitavo filho, os nervos de seu Macário estavam em
pandarecos. Veio, chamada às pressas, a parteira, que era uma senhora de cento
e trinta quilos, baixinha e patusca. A parteira espiou-a com uma experiência de
mil e setecentos partos e concluiu: “Não é pra já!”. Ao que, mais do que
depressa, replicou seu Macário:
—
Meus dentes estão doendo!
E,
de fato, o grande termômetro, em qualquer parto da esposa, era a sua dentadura.
A parteira duvidou, mas, daí a cinco minutos, foi chamada outra vez. Houve um
incidente de última hora. É que a digna profissional já não sabia onde estava a
luva. Procura daqui, dali, e não acha. Com uma tremenda dor de dentes postiços,
seu Macário teve de passar-lhe um sabão:
—
Pra que luvas, carambolas? Mania de luvas!
EUSEBIOZINHO
Assim
nasceu o Eusebiozinho, no parto mais indolor que se possa imaginar. Uma prima
solteirona veio perguntar, sôfrega: “Levou algum ponto?”. Ralharam:
—
Sossega o periquito!
O
fato é que seu Macário atingira, em cheio, o seu ideal de pai. Nascido o filho
e passada a dor da chapa dupla, o homem gemeu: “Tenho um filho homem. Agora
posso morrer!”. E, de fato, quarenta e oito horas depois, estava almoçando,
quando desaba com a cabeça no prato. Um derrame fulminante antes da sobremesa.
Para d. Flávia foi um desgosto pavoroso. Chorou, bateu com a cabeça nas
paredes, teve que ser subjugada. E, na realidade, só sossegava na hora de dar o
peito. Então, assoava-se e dizia à pessoa mais próximo:
—
Traz o Eusebiozinho que é hora de mamar!
FLOR
DE RAPAZ
Eusebiozinho
criou-se agarrado às saias da mãe, das irmãs, das tias, das vizinhas. Desde
criança, só gostava de companhias femininas. Qualquer homem infundia-lhe
terror. De resto, a mãe e as irmãs o segregavam dos outros meninos.
Recomendavam: “Brinca só com meninas, ouviu? Menino diz nomes feios!”. O fato é
que, num lar que era uma bastilha de mulheres, ele atingiu os dezesseis anos
sem ter jamais proferido um nome feio, ou tentado um cigarro. Não se podia
desejar maior doçura de modos, idéias, sentimentos. Era adorado em casa,
inclusive pelas criadas. As irmãs não se casavam, porque deveres matrimoniais
viriam afastá-las do rapaz. E tudo continuaria assim, no melhor dos mundos se,
de repente, não acontecesse um imprevisto. Um tio do rapaz vem visitar a
família e pergunta:
—
Você tem namorada?
—
Não.
—
Nem teve?
—
Nem tive.
Foi
o bastante. O velho quase pôs a casa abaixo. Assombrou aquelas mulheres
transidas com os vaticínios mais funestos: “Vocês estão querendo ver a caveira
do rapaz?”. Virou-se para d. Flávia:
—
Isso é um crime, ouviu?, é um crime o que vocês estão fazendo com esse rapaz!
Vem cá, Eusébio, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição.
Apontava:
—
Isso é jeito de homem, é? Esse rapaz tem que casar, rápido!
PROBLEMA
MATRIMONIAL
Quando
o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se
entreolharam: “É mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito egoístas! Nós não
pensamos no Eusebiozinho!”. Quanto ao rapaz, tremia num canto. Ressentido ainda
com a franqueza bestial do tio, bufou:
—
Está muito bem assim!
A
verdade é que já o apavorava a perspectiva de qualquer mudança numa vida tão
doce. Mas a mãe chorou, replicou: “Não, meu filho. Seu tio tem razão. Você
precisa casar, sim”. Atônito, Eusebiozinho olha em torno. Mas não encontrou
apoio. Então, espavorido, ele pergunta:
—
Casar pra quê? Por quê? E vocês? — Interpela as irmãs: — Por que vocês não se
casaram?
A
resposta foi vaga, insatisfatória:
—
Mulher é outra coisa. Diferente.
A
NAMORADA
Houve,
então, uma conspiração quase internacional de mulheres. Mãe, irmãs, tias,
vizinhas desandaram a procurar uma namorada para o Eusebiozinho. Entre várias
pequenas possíveis, acabaram descobrindo uma. E o patético é que o principal
interessado não foi ouvido, nem cheirado. Um belo dia, é apresentado a Iracema.
Uma menina de dezessete anos, mas que tinha umas cadeiras de mulher casada.
Cheia de corpo, um olhar rutilante, lábios grossos, ela produziu, inicialmente,
uma sensação de terror no rapaz. Tinha uns modos desenvoltos que o esmagavam.
E
começou o idílio mais estranho de que há memória. Numa sala ampla da Tijuca, os
dois namoravam. Mas jamais os dois ficaram sozinhos. De dez a quinze mulheres
formavam a seleta e ávida assistência do romance. Eusebiozinho, estatelado numa
inibição mortal e materialmente incapaz de segurar na mão de Iracema. Esta, por
sua vez, era outra constrangida. Quem deu remédio à situação, ainda uma vez,
foi o inconveniente e destemperado tio. Viu o pessoal feminino controlando o
namoro. Explodiu: “Vocês acham que alguém pode namorar com uma assistência de
Fla-Flu? Vamos deixar os dois sozinhos, ora bolas!”. Ocorreu, então, o
seguinte: sozinha com o namorado, Iracema atirou-lhe um beijo no pescoço. O
desgraçado crispou-se, eletrizado:
—
Não faz assim que eu sinto cócegas!
O
VESTIDO DE NOIVA
Começaram
os preparativos para o casamento. Um dia, Iracema apareceu, frenética,
desfraldando uma revista. Descobrira uma coisa espetacular e quase esfregou
aquilo na cara do Eusebiozinho: “Não é bacana esse modelo?”. A reação do rapaz
foi surpreendente.
Se
Iracema gostara do figurino, ele muito mais. Tomou-se de fanatismo pela
gravura:
—
Que beleza, meu Deus! Que maravilha!
Houve,
aliás, unanimidade feroz. Todos aprovaram o modelo que fascinava Iracema.
Então, a mãe e as irmãs do rapaz resolveram dar aquele vestido à pequena. E
mais, resolveram elas mesmas confeccionar. Compraram metros e metros de
fazenda. Com um encanto, um élan tremendo, começaram a fazer o vestido. Cada
qual se dedicava à sua tarefa como se cosesse para si mesma. Ninguém ali, no entanto,
parecia tão interessado quanto Eusebiozinho. Sentava-se, ao lado da mãe e das
irmãs, num deslumbramento: “Mas como é bonito! Como é lindo!”. E seu enlevo era
tanto que uma vizinha, muito sem cerimônia, brincou:
—
Parece até que é Eusebiozinho que vai vestir esse negócio!
O
LADRÃO
Uns
quatro dias antes do casamento, o vestido estava pronto. Meditativo,
Eusebiozinho suspirava: “A coisa mais bonita do mundo é uma noiva!”. Muito bem.
Passa-se mais um dia. E, súbito, há naquela casa o alarme: “Desapareceu o
vestido da noiva!”. Foi um tumulto de mulheres. Puseram a casa de pernas para o
ar, e nada. Era óbvia a conclusão: alguém roubou! E como faltavam poucos dias
para o casamento sugeriram à desesperada Iracema: “O golpe é casar sem vestido
de noiva!”. Para quê? Ela se insultou:
—
Casar sem vestido de noiva, uma pinoia! Pois sim!
Chamaram
até a polícia. O mistério era a verdade, alucinante: Quem poderia ter interesse
num vestido de noiva? Todas as investigações resultaram inúteis. E só
descobriram o ladrão quando dois dias depois, pela manhã, d. Flávia acorda e dá
com aquele vulto branco, suspenso no corredor. Vestido de noiva, com véu e
grinalda — enforcara-se Eusebiozinho, deixando o seguinte e doloroso bilhete: “Quero
ser enterrado assim”.
KKKKKKK Eusebiozinho jogava água fora da bacia.
ResponderExcluirQue triste fim de Eusebiozinho! Gostei muito do conto, apesar do triste final.
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