O
texto abaixo é de autoria de Monteiro Lobato.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/monteiro_lobato/.
Boa
leitura!
A
VIDA EM OBLIVION (OS TRÊS LIVROS)
1908
A
cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não
podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e
só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além. Desviou-se
dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as
estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde
ramalzinho.
O mundo esqueceu
Oblivion, que já foi rica e lépida, como os homens esquecem a atriz famosa logo
que se lhe desbota a mocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem
esperança, é humilde e quieta como a do urupê escondido no sombrio dos grotões.
Trazem-lhe
os jornais o rumor do mundo, e Oblivion comenta-o com discreto parecer. Mas
como os jornais vêm apenas para meia dúzia de pessoas, formam estas a
aristocracia mental da cidade. São “Os Que Sabem”. Lembra o primado dos
Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de Oblivion.
Atraídos
pelas terras novas, de feracidade sedutora, abandonaram-na seus filhos; só
permaneceram os de vontade anemiada, débeis, faquirianos. “Mesmeiros”, que
todos os dias fazem as mesmas coisas, dormem o mesmo sono, sonham os mesmos
sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assuntos, esperam o mesmo
correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam do presente e pitam – pitam
longos cigarrões de palha, matadores do tempo.
Entre
as originalidades de Oblivion uma pede narrativa: o como da sua educação
literária.
Promovem-se
três livros venerandos, encardidos pelo uso, com as capas sujas, consteladas de
pingos de vela – lidos e relidos que foram em longos serões familiares por
sucessivas gerações. São eles: La mare d’Auteuil, de Paulo de Kock, para o uso
dos conhecedores do francês; uns volumes truncados do Rocambole, para enlevo
das imaginações femininas; e Ilha maldita, de Bernardo Guimarães, para deleite
dos paladares nacionalistas. O dono primitivo seria talvez algum padre morto
sem herdeiros. Depois, à força de girarem de déu em déu, esses livros
forraram-se à propriedade individual. Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole
diz na rodinha da farmácia:
–
Onde andará o Rocambole?
Informam-no
logo, e o candidato toma-o das mãos do detentor último, ficando desde esse
momento como o seu novo depositário. Processo sumaríssimo e inteligente.
Quando
se esgotou a minha provisão de livros e, ignorante ainda da riqueza literária
da terra, deliberei decorrer ao estoque local, dirigi-me a um dos Seis. O homem
enfunou-se de legítimo orgulho ao dar-me os informes pedidos.
–
Temos obras de fôlego, poucas mas boas, e para todos os paladares. Gênero
pândego, para divertir, temos, “por exemplo”, La mare d’Auteuil, de Paulo de
Kock. Impagável!
–
Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.
–
Temos o célebre Rocambole, “gênero imaginoso”; infelizmente está incompleto;
faltam uns dezessete volumes.
–
Não me serve o resto.
–
E temos uma obra-prima nacional, a Ilha maldita, do “nosso” Bernardo Guimarães.
Parando
aí o catálogo, era forçoso escolher.
No
concerto dos nossos romancistas, onde Alencar é o piano querido das moças e
Macedo a sensaboria relambória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo
é ir para o mato, para a roça – mas uma roça adjetivada por menina de Sion,
onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas
viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas.
Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as
paisagens com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o
vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte
perfeitas e invariáveis amenidades. Nossas desajeitadíssimas caipiras são
sempre lindas morenas cor de jambo.
Bernardo
falsifica o nosso mato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinhos,
Bernardo aponta doçuras, insetos maviosos, flores olentes. Bernardo mente.
Mas
como mente menos que o Paulo de Kock ou o truculento Ponson, pai do Rocambole,
escolhi-o.
Veio
o livro. Volume velho como um monumento egípcio e como ele revestido de
inscrições. Cada leitor que passava ia deixando o rastro gravado a lápis.
“Li
e gostei”, dizia um, “Li e apreciei”, afirmava certa senhorita. Inscrição quase
em cuneiforme rezava “Fulano leu e apreciou o talento do grande escritor
brasileiro”. Outro versificava: “Já foi lido – Pelo Walfrido”. Tal moça notara
parcimoniosamente: “Li” e assinou. Um amigo da ordem inversa pôs: “Li e muito
gostei”.
Houve
quem discordasse. “Li e não gostei”, declarou um fulano. O patriotismo
literário dum anônimo saiu a campo em prol do autor: “Os porcos preferem milho
a pérolas”, escreveu ele embaixo. Monograma complicadíssimo subscrevia isto: “O
Rocambole diverte mais”.
E
assim, por quanto espaço em branco tinha o livro, margens ou fins de capítulo,
as apreciações se alastravam com levíssimas variantes ao sóbrio “Li e gostei”
inicial. Havia nomes bem antigos, de pessoas falecidas, e nomes das meninas
casadeiras da época.
Os
intelectuais de Oblivion bebiam à farta naquela veneranda fonte. Em Bernardo
abeberavam-se de “estilo e boa linguagem”, conforme afirmou um; no Rocambole
truncado exercitavam os músculos da imaginativa; e no Paulo de Kock, os
eleitos, os Sumos (os que sabiam francês!) fartavam-se da grivoiserie permitida
a espíritos superiores.
Essa
trindade impressa bastava à educação literária da cidade. Feliz cidade! Se é de
temer o homem que só conhece um livro, a cidade que só conhece três é de
venerar. Veneração, entretanto, que não virá, porque o mundo desconhece
totalmente a pobrezinha da Oblivion…
Amei ler esse conto! Imaginando todos os habitantes da cidade lendo os mesmos três livros rsrs.
ResponderExcluirMeio confuso kkkk mas gostei.
ResponderExcluir