O
texto abaixo é de autoria de Fernando Sabino.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/fernando_sabino/.
Boa
leitura!
DEIXA
O ALFREDO FALAR!
A
ARTE brasileira da conversa não é de fácil aprendizado. Como toda arte, exige
antes de mais nada uma verdadeira vocação. E essa vocação se aprimora ao longo
do caminho que vai da inocência à experiência. Como em toda arte.
Para
princípio de conversa, distinga-se: quando falo em conversa, não estou me
referindo à lábia, à astúcia, à solércia do brasileiro no passar a bicaria e
vender o seu peixe. Falo precisamente no bate-papo, erigido numa das mais
requintadas instituições nacionais.
Mas
por que arte brasileira? Os outros povos acaso não batem papo? A própria
expressão, brasileiríssima, corresponde em inglês exatamente ao verbo “to
chat”, na acepção que lhe dá o dicionário: “to converse in an easy or gossipy
manner; talk familiarly.” Até os ingleses, meu Deus, os ingleses têm também o
seu papo: um deles, na mesa do bar, olha para fora e diz que vai chover; meia
hora depois outro diz que não vai chover; meia hora depois o terceiro se retira
dizendo que não gosta de discussão. A falta de graça desta velha anedota não
está em ser velha, mas na finalidade útil que fez michar o papo. Este não deve
ter finalidade alguma, senão a de matar o tempo da melhor maneira possível. É
coisa de latino em geral e de brasileiro em particular: fazer da conversa não
um meio, mas um fim em si mesmo. Se não me engano, essa é a distância que
separa a ciência da arte.
No
papo bem batido, a discussão não passa de uma motivação, sem intuito de
convencer ninguém, nem de provar que se tem razão. Os que nela se envolvem
devem estar sempre prontos a reconhecer, no íntimo, que poderiam muito bem
passar a defender o ponto-de-vista oposto, desde que os que o defendem fizessem
o mesmo. Os temas devem ser de uma apaixonante gratuidade, a ponto de permitir
que, no desenrolar da conversa, de súbito ninguém mais saiba o que se está
discutindo. Mesmo nas eternas discussões sobre mulher, religião ou futebol,
para que se constituam em bate-papo, longas digressões hão de ser admitidas,
desde que pertinentes.
Esta
última observação, aliás, é pertinente ela própria, já que falei em futebol,
quando se trata de papo acalorado como o que batiam aqueles dois amigos,
parados numa esquina, violando o silêncio da rua adormecida:
—
Se o último jogo do Campeonato fosse do Botafogo contra o Fluminense…
—
Ora, Alfredo, pra cima de mim! Ia ser de goleada.
—
Você não me deixou terminar, Dagoberto. Eu queria dizer que o Botafogo…
—
Que Botafogo que nada! Com o Vasco diziam a mesma coisa…
—
Dagoberto, você não me deixa falar!
—
… e no entanto ele acabou entrando bem. Essa não, Alfredo.
—
Não estou falando no Vasco. Eu disse que o Botafogo…
—
E no ano passado, que foi que o Botafogo fez? Me diga só o que ele fez.
—
Você não me deixa falar, Dagoberto.
—
Desde o princípio todo mundo sabia que o Fluminense…
—
Você não me deixa falar!
A
essa altura abriu-se uma janela no edifício da esquina e surgiu um indivíduo
estremunhado:
—
Ô Dagoberto! Deixa o Alfredo falar!
A
boa conversa implica sempre em deixar o Alfredo falar. Além disso a discussão,
ainda que gratuita, pode exaurir o papo diante de uma impossível opção, como a
de saber qual é o melhor, Tolstoi ou Dostoievski, Corcel ou Opala, Caetano ou
Chico. A menos que ocorra ao discutidor o recurso daquele outro, hábil em
conduzir o papo, que teve de se calar quando, no melhor de sua argumentação
sobre energia atômica, soube que estava discutindo com um professor de física
nuclear:
—
Você é presidencialista ou parlamentarista? — perguntou então.
—
Presidencialista.
—
Pois eu sou parlamentarista.
E
recomeçaram a discutir.
Mais
ardente praticante do que estes, só mesmo o que um dia se intrometeu na nossa
roda, interrompendo animadíssima conversa:
—
Posso dar minha opinião?
Todos
se calaram para ouvi-lo. E ele, muito sério:
—
Qual é o assunto?
Mas
percebo que me perdi em discussões, polêmicas, argumentos e desaguisados,
afastando-me do verdadeiro espírito que deve presidir o culto dessa arte. De
preferência, que ela seja praticada apenas a dois — como diz o mineiro, mais de
dois é comício. E entre estes dois, bom será que reine amável concordância,
para que, alternadamente ouvindo e falando, possam ambos conjugar o delicioso
verbo discretear.
De
minha parte, possa eu encerrar a conversa rendendo minha homenagem a um amigo:
àquele que, no consenso geral dos que com ele privam, veio dar a esta arte o
melhor do seu talento criador.
Ao
longo de minha vida tive a ventura de conviver com excelentes papos, de Jayme
Ovalle a Sérgio Porto, de Milton Campos a Mário de Andrade, para só falar nos
mortos mais queridos. Não sendo privilégio de gente ilustre, tenho encontrado
grandes praticantes entre marceneiros, pescadores, garçons e choferes de táxi.
Mas
nenhum como este, cuja despedida à porta de sua casa se prolonga de meia-noite
às quatro, deixando-nos a impressão de haver decorrido apenas meia hora; capaz
de reter-nos a noite inteira num café em pé, conversando sobre o que seja, do
último boato político à imortalidade da alma. Jânio Quadros, quando Presidente,
chegou a mandar chamá-lo a Brasília — queria-o como seu assessor:
—
Soube que você gosta de bater papo. Venha fazê-lo aqui.
—
Fá-lo-ia, Presidente — que língua, a nossa! — se tivesse competência. Mas não
passo de um especialista em ideias gerais.
—
Eu também! — exclamou o Presidente, batendo no peito. Depois, olhos brilhantes,
apontou um mapa na parede: — E este Brasil inteiro entregue a nós dois! Já
pensou?
Tinha
razão, o Presidente. E tê-lo-ia (!) levado na conversa, se as intenções
presidenciais fossem apenas as de conversar. Porque se trata do rei da
conversa, o Pelé do bate-papo, reconhecidamente o mais primoroso cultor desta
arte sutil. Já tive mesmo a cautela, apontando-o desde já à posteridade, de
compor para ele um epitáfio:
“Aqui
jaz Otto Lara Resende,
Mineiro
vivo, mancebo guapo.
Deixa
saudades, isso se entende:
Passou
cem anos batendo papo.”
Fonte: http://contobrasileiro.com.br/deixa-o-alfredo-falar-cronica-de-fernando-sabino/.
Bem interessante essa crônica! Gostei de ler.
ResponderExcluirGosteiii..
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