O
texto abaixo é de autoria de Guimarães Rosa.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/guimaraes_rosa/.
Boa
leitura!
A
MENINA DE LÁ
Sua
casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa,
lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e
arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando
galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria,
Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.
Não
que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas
de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. –
“Ninguém entende muita coisa que ela fala…” – dizia o Pai, com certo espanto.
Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo:
– “Ele xurugou?” – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo
esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: – “Tatu não vê
a lua…” – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto:
da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos
sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava;
ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente
vem perdendo. Só a pura vida.
Em
geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e
não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios.
Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma.
Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo,
comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e
atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com
artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava
de repente. – “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela
respondia, alongada, sorrida, moduladamente: – “Eu… to-u… fa-a-zendo”. Fazia
vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?
Nada
a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava,
se sorrindo: – “Menino pidão… Menino pidão…” Costumava também dirigir-se à Mãe
desse jeito: – “Menina grande… Menina grande…” Com isso Pai e Mãe davam de
zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: – “Deixa… Deixa…” – suasibilíssima,
inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer
novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os
acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre
ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem;
nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma
engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.
Conversávamos,
agora. Ela apreciava o casacão da noite. – “Cheiinhas!” – olhava as estrelas,
deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: – “Tudo
nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de
um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – “A gente
não vê quando o vento se acaba…” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O
que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: – “Alturas de
urubuir…” Não, dissera só: – “… altura de urubu não ir.” O dedinho chegava
quase no céu. Lembrou-se de: – “Jabuticaba de vem-mever…” Suspirava, depois: –
“Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “Não sei” Aí, observou: – “O passarinho
desapareceu de cantar…” De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no
escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se
interrompera. Eu disse: – “A Avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a
chamar o sabiá de “Senhora Vizinha…” E tinha respostas mais longas: – “Eeu? Tou
fazendo saudade.” Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: – “Vou
visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me,
zombaz, seus olhos muito perspectivos: – “Ele te xurugou?” Nunca mais vi
Nhinhinha.
Sei,
porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.
Nem
Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi
de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: – “Eu
queria o sapo vir aqui” Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de
seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas,
aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e
não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã
verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: – “Está trabalhando um
feitiço…” Os outros se pasmaram; silenciaram demais.
Dias
depois, com o mesmo sossego: – “Eu queria uma pamonhinha de goiabada” –
sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os
pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros
prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito
acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e
descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que
eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura.
Sorria apenas, segredando seu – “Deixa… Deixa…” – não a podiam despersuadir.
Mas veio vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a olhava
com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também
outros modos.
Decidiram
de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira,
com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la
para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber.
Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas, sentiam um medo
extraordinário da coisa. Achavam ilusão.
O
que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o
sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava se estorricar.
Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – “Mas, não pode, ué…”
– ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leito,
o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – “Deixa… Deixa…” – se sorria,
repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das
andorinhas.
Daí
a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o
arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo
cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a
refrescação. Fez o que nunca lhe vira, pular e correr por casa e quintal.
-
“Adivinhou passarinho verde?” – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os
passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento,
Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe
e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a
ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu
passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela
crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência
decerto prazia que fosse.
E,
vai, Nhinhinha adoeceu e morreu.
Diz-se
que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.
Desabado
aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente
enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se
cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se
ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer
aquilo de – “Menina grande… Menina grande…” – com toda ferocidade. E o Pai
alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que
ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o
tamboretinho se quebrava.
Agora,
precisavam de mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem
o enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem,
carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho,
Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por isso com ela ralhara. O
que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites de verdes
brilhantes… A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua
vontade?
O
Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso,
era como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer…
A
Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou –
o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso
encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa
com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha
em glória, Santa Nhinhinha.
Muito bom o conto, mesmo sendo meio triste!
ResponderExcluirGostei e me emocionei com o conto. Mas essa maneira de escrever de Guimarães Rosa as vezes dificulta o meu entendimento rsrs.
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