O
texto abaixo é de autoria de Monteiro Lobato.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/monteiro_lobato/.
Boa
leitura!
JÚRI
NA ROÇA
1909
NÃO
É MEU ESTE CASO, mas dum tio, juiz numa Itaoca beira-mar. Homem sessentão,
cheio de rabugens, pigarros e mais macacoas da velhice, nem por isso deixa de
ser amigo da pulha, como diria Mestre Machado. Gosta de contar pilhérias e casos
de truz, que a meio descambam em caretas reumáticas, muito de apiedar corações
sobrinhos.
Os
seus domínios jurídicos são o reino da própria Pacatez. Os anos ali fluem para
o Esquecimento no deslizar preguiçoso dos ribeirões espraiados, sem cascatas
nem corredeiras encrespadoras do espelho das águas — distúrbio, tiro ou
escândalo passional. O povo, escasso como penas em frango impúbere, vive de
apanhar tainhas e mariscos. Feito o que, da capo às tainhas e mariscos.
É
extrema a penúria de emoções. Vidas há que ardem inteirinhas sem o tremelique
duma comoção forte. Só a Morte pinga, a espaços, no cofre dos acontecimentos, o
vintém azinhavrado dum velho mariscador morto de pigarro senil, ou o tostão
duma pessoa grada, coletor de rendas, fiscal, agente do correio.
Em
tempos deu cédula graúda, um visconde da Jamanta, último varão conspícuo de que
ficou memória no lugar.
Fora
disso nada mais bole com a sensibilidade em perpétua coma de excelente povo —
nem dramas de amor, nem rixas eleitorais, nem coisa nenhuma destoante dos
mandamentos do Pasmado Viver.
A
taramelagem das más-línguas vê-se forçada, nos serões familiares, ou na venda
do José Inchado (clube da ralé), ou na Botica do Cação de Ouro (aqui o escol),
a esgaravatar as castanhas chochas do assunto sovado ou frívolo. Sempre
conversinhas que não vão nem vêm.
A
grande preocupação de todos é matar o tempo. Matam-no, os homens, pitando
cigarrões de palha, e as mulheres, gestando a prole enfermiça. E assim
escorregam-se para o Nirvana os dias, os meses, os anos, como lesmas de Cronos,
deixando nas memórias um rastilho dúbio que rapidamente se extingue.
Nessa
lagoa urbana rebentou com estardalhaço a notícia duma sessão do júri. O povo
rejubilou. Vinte anos havia que o realejo da justiça popular empoeirava num
desvio do Fórum, mudo à falta dum capadócio que lhe metesse no bojo o níquel
dum modesto ferimento leve. Fizera-o agora o Chico Baiano, ave de arribação
despejada ali por um navio da Costeira. Que regalo! Ia o promotor cantar a
tremenda ária da Acusação; o Zezeca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de
Albano disfarçada de Defesa. Sua Excelência o Meritíssimo Juiz faria de ponto e
contrarregra. Delícias da vida!
Ao
pé do fogo, em casebre humilde, o pai explicava ao filho:
—
Aquilo é que é, Manequinho! Você vai ver uma estrumela de gosto, que até parece
missa cantada de Taubaté. O juiz, feito um gavião-pato, senta no meio da mesa,
num estrado deste porte; à mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca
de papéis na frente. Embaixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em
roda. E a coisa garra num falatório até noite alta: o Chico lê que lê; o
promotor fala e refala; o Zezeca rebate e tal e tal. Uma lindeza!
O
assunto era o mesmo na venda do José Inchado.
—
Lembra-se, compadre, daquele júri, deve fazer vinte anos, que “absorveu” o
Pedro Intanha? Eh, júri macota! O doutor Gusmão veio de Pinda especialmente e
falou que nem um vigário. Era só o “nobre orgo do ministério” praqui, o
“meretrício doutor juiz” prali. Sabia dizer as coisas o ladrão! Também, comeu
milho grosso!, pra mais de quinhentos bagos, dizem. Mas valia. Isso lá valia.
Na
Botica do Cação de Ouro o assunto ainda era o mesmo.
—
Não, não; você está enganado; não foi desse jeito, não! Ora! Pois se eu até
servi de testemunha!… Não teime, homem de Deus!… Sabe como foi? Eu conto. O
Pedro Intanha teve um bate-boca com o major Vaz, perdeu a cabeça e chamou ele
de estupor bem ali defronte da Nhá Veva; e vai o major e diz: “Estupor é a
avó”. Foi então o Pedro e…
Só
não gostou da notícia o meu tio juiz. Maçada. Incomodarem-no por causa de um
crimezinho tão à toa. E tinha razão. O delito do mulato não valia uma casca de
ostra.
Chico
Baiano costumava todas as noites “soverter” um martelo da “legítima” no
botequim do Bento Ventania. Ficava alegrete, chasqueador, mas não passava
disso. Certa vez, porém, errou a dose, e em vez do martelo do costume chamou ao
papo três. A pinga era forte; subiu-lhe imediatamente à torre das ideias. A
princípio Baiano destabocou. Deu grandes punhadas no balcão; berrou que o Sul é
uma joça; que o Norte é que é; que baiano é ali no duro; que quem fosse homem
que pulasse para fora etc. etc. O botequim estava deserto; não havia quem lhe
apanhasse a luva, a não ser o Ventania; mas este acendeu o cigarro
pachorrentamente, trancou as portas na cara do bêbado e foi dormir.
Chico
Baiano, na rua, continuou a desafiar o mundo — que rachava, partia caras,
arrancava fígados. Infelizmente também a rua estava deserta e nem sequer a
minguante a pino lhe dava sombras com que esgrimir-se. Foi quando saltou do
corredor da casa dos Mouras o Joli, cachorrinho de estimação da Sinharinha
Moura, bicho de colo, metade pelado, metade peludo, e deu de ladrar, feito um
bobo, diante do insólito perturbador do silêncio.
O
Baiano sorriu-se. Tinha contendor, afinal.
—
’guenta, lixo! — berrou e, cambaleando, descreveu uma “letra” de capoeiragem,
cujo remate foi o valentíssimo pontapé com que projetou o totó a cinco metros
de distância. Joli rompeu num ganir de cortar a alma, e o ofensor, perdido o
equilíbrio, veio de lombo no chão.
A
Mourisma despertou de sobressalto, surgindo logo à porta o redondo da Câmara,
Maneco Moura, de camisola, carapuça de dormir e vela na mão.
Estrovinhado,
o homem não enxergava coisa nenhuma desta vida, a não ser o clarão da luz à sua
frente.
—
Que é lá aí? — berrou ele para a rua.
—
É pimenta-cumari! — roncou o mulato já a prumo; e enquanto, esfregando os
olhos, o Moura perguntava a si próprio se não era aquilo pesadelo, o facínora
desenhou no chão uma figura de capoeiragem chamada “rabo de arraia”.
Consequência: o pesado vereador aluiu com vela e tudo, esborrachando o nariz no
cimento da calçada.
Era
esse o fato sobre o qual ia a Justiça manifestar-se.
Fale
o tio:
—
Foi uma seca sem nome o tal do júri. O promotor, sequioso por falar, com a
eloquência ingurgitada por vinte anos de choco, atochou no auditório cinco
horas maciças duma retórica do tempo do onça, que foram cinco horas de pigarros
e caroços de encher balaios. Principiou historiando o direito criminal desde o
Pitecantropo Erecto, com estações em Licurgo e Vedas, Moisés e Zend-Avesta.
Analisou todas as teorias filosóficas que vêm de Confúcio a Freixo Portugal:
aniquilou Lombroso e mais “lérias” de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que
o livre-arbítrio é a maior das verdades absolutas e que os deterministas são
uns cavalos, inimigos da religião de nosso país; arrasou Comte, Spencer e
Haeckel, representantes do anti-Cristo na terra; esmoeu Ferri. Contou depois
sua vida, sua nobre ascendência entroncada na alta prosápia duns Esteves do rio
Cávado, em Portugal: o heroísmo de um tio morto na Guerra do Paraguai e o não
menos heroico ferimento de um primo, hoje escriturário do Ministério da Guerra,
que no Combate de Cerro Corá sofreu uma arranhadura de baioneta na “face
lateral do lobo da orelha sinistra”.
“Provou
em seguida a imaculabilidade da sua vida; releu o cabeçalho da acusação feita
no julgamento-Intanha; citou períodos de Bossuet — a águia de Meaux, de Rui — a
águia de Haia, e de outras aves menores; leu páginas de Balmes e Danoso Cortez
sobre a resignação cristã; aduziu todos os argumentos do doutor Sutil a
respeito da Santíssima Trindade; e concluiu, finalmente, pedindo a condenação
da ‘fera humana que cinicamente me olha como para um palácio’ a trinta anos de
prisão celular, mais a multa da lei.”
Aqui
o tio parou, acabrunhado. Correu a mão lívida pela testa em suor.
Negrejaram-se-lhe as olheiras.
—
Sinto um cansaço de alma ao recordar esse dia. Como é fértil em recursos a
imbecilidade humana! Houve réplica. Houve tréplica. O Zezeca bateu o promotor
em asnice. Engalfinharam-se, disputando acirrados o cinturão de ouro do Ornejo.
Horror… O borbotão de asneiras era caudal sem fim e o
conselho
já dava evidentes sinais de canseira. A tantas, um jurado levantou-se e pediu
licença para ficar de cócoras no banco, porque, “com perdão da palavra, estava
com escandescência”. Veja você!…
—
Afinal…
—
Afinal foram os jurados para a sala secreta. Noite alta já. Os candeeiros de
petróleo, com os vidros fumados, modorravam funeriamente. O Fórum, deserto de
curiosos, estava quase às escuras. O destacamento policial (dois praças e um
cabo) cabeceava, a dormir em pé. Três horas já haviam corrido, de sonolenta
expectação, quando da sala secreta saem os jurados com o papelório.
Entregam-mo.
Corro os olhos e esfrio. Tudo errado! Era impossível julgar com base na salada
de batata e ovos que me fizeram dos quesitos. Tive de reenviá-los ao curral do
conselho. Expliquei-lhes novamente, com infinita paciência, como deveriam
proceder. Façam isto, assim, assado, entenderam?
“—
Entendemos, sim, senhor — respondeu um por todos —, mas por via das dúvidas era
bom que o seu doutor mandasse cá dentro o João Carapina pra nos ajudar.
“Abri
a minha maior boca e olhei assombrado para o escrivão:
“—
E esta, amigo Chico?
“O
escrivão cochichou-me que era sempre assim. Em não sorteado o João Carapina,
não havia meio de a coisa correr bem na sala secreta. E citou vários
antecedentes comprobatórios. Não me contive — berrei, chamei-lhes nomes, asnos
de Minerva, onagros de Têmis, e fi-los trancafiar de novo na saleta.
“—
Ou a coisa vem conforme o formulário, ou vocês, cambada, ficam aí
toda
vida!
“Decorreu
mais outra hora e nada. Nenhum ruído promissor na sala
secreta.
Perdi a esperança e acabei perdendo a paciência. Chamei o oficial de justiça.
“—
Vá desentocar-me esse Carapina e ponha-mo cá debaixo de vara, dormindo ou
acordado, vivo ou morto. Depressa!…
“O
oficial saiu, lépido, e meia hora depois voltava com o carpinteiro dos nós
górdios a bocejar, estremunhado, de chinelas e cobertor vermelho ao pescoço.
“—
Senhor João — gritei —, meta-se na sala secreta e amadrinhe-me esse lote de
cavalgaduras. Com seiscentos milhões de réus, é preciso acabar com isto!
“O
carpinteiro foi introduzido na sala secreta.
“Logo
em seguida, porém, toc, toc, toc, batem lá de dentro. O oficial de justiça abre
a porta. Surge-me o Carapina com cara idiota.
“—
Que há? — perguntei, escamado.
“—
O que há, senhor doutor, é que não há ninguém na sala; os jurados fugiram pela
janela!…
“—
!!!
“—
E deixaram em cima da mesa este bilhetinho para Vossa Excelência.
“Li-o.
‘Senhor Doutor Juiz, nos desculpe, mas nós condenamos o bicho no grau máximo.’
“Máximo
foi a palavra que decifrei pelo sentido: estava escrito ‘maquécimo’.
“Levantei-me,
possesso.
“—
Está suspensa a sessão! Senhor comandante, recolha o réu à… Que é do réu?
“Firmei
a vista: não vi sombra de réu no banquinho. O comandante, que estava a dormir
de pé, despertou sobressaltado, esfregando o olho.
“—
Senhor que é do réu? — gritei.
“O
pobre cabo, com a ajuda dos dois soldados a caírem de sono, deu busca embaixo
da mesa, pelos cantos, no mictório, dentro das escarradeiras. Como nada
encontrasse, perfilou-se e disse com respeitosa indignação:
“—
Saberá Vossa Excelência que o safado escafedeu…
“O
relógio da matriz badalava três horas — três horas da madrugada!… Era demais.
Perdi a compostura e explodi.
“—
Sabem duma coisa? Vão todos à… — e berrei a plenos pulmões o grande palavrão da
língua portuguesa.”
—
E?…
—
E fui dormir.
Não entendi muito bem, só fiquei com pena do totó..
ResponderExcluirAmei ler esse conto, e "morri" de rir. Mas, vou levar algum tempo para descobrir o significado de algumas palavras kkkkk.
ResponderExcluirMonteiro Lobato era um gênio literário!