O
texto abaixo é de autoria de Guimarães Rosa.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com ›
guimaraes_rosa.
Boa
leitura!
DESENREDO
Do
narrador a seus ouvintes:
— Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado,
bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode,
porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia,
a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes
bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se.
Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando
o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto,
claro, coberto de sete capas.
Porque
o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância.
Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua
forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de
papel.
Não
se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente.
Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado
engano.
Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não
vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem
mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também,
que de leve a ferira, leviano modo.
Jó
Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito
dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável
e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de
seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem,
em lance de tão vermelha e preta amplitude.
Ela
— longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a
aguentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto,
ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à
Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
Soube-o
logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com
a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme
fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se.
Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre
vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se
a entrada dos demônios.
Da
vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor
não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas,
apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido
destino.
Tudo
aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se
histórico,
quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam
atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado,
quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a
prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.
No
decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso
afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses,
que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — ideia
inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de
notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria
apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.
Nunca
tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim.
Reportava
a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se
por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro
como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e
à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar
almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O
ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas
escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado —
plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta.
Mais certa?
Celebrava-a,
ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o
absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta.
Pois,
produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou
o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu
nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já
acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo
a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida,
perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e
fofos de bandeira ao vento. Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó
Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor
de sua útil vida.
E
pôs-se a fábula em ata.
Rosa,
João Guimarães. Tutameia (Terceiras estórias). 9.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.
Gostei de ler. Tudo acabou bem afinal kkkkk.
ResponderExcluirMuito bom kk
ResponderExcluir