O
texto abaixo é de autoria de Moreira Campos.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://pt.wikipedia.org ›
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Boa
leitura!
AS
CORUJAS
Ele
conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chão e metido no dólmã de
brim listrado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga, insistente. Fecha as
janelas do velho necrotério. Apanha os pedaços de lona e, com eles, cobre os
mortos sobre a lousa. Deixa-lhes apenas os pés de fora. A mulher sem chinelas,
com sangue coagulado entre os dedos abertos; as grandes botas gastas e de
cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no oitão do armazém da praia,
onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões, folheado por muitos
dedos, foram recolhidos à delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-lhes
as cabeças. As corujas descem pela claraboia. Têm voo brando, impressentido,
num cair de asas leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua
presença, das asas de pluma sem ruído. Alteiam-se e pousam sobre o peito dos
mortos, arranhando-lhes os olhos parados, que fulgem na noite, divididos no
meio.
–
Xô, praga!
Os
pedaços de lona ficam dobrados a um canto da sala escura, e ele os puxa sempre,
curtos, deixando à mostra os pés inertes. Indispensável fazê-lo; depois fechar
a luz triste da lâmpada, que desce pelo fio longo com teias de aranha. O facho
da lâmpada de pilhas ainda percorre o teto de travejamento antigo. Crescem e
oscilam as sombras: as botas de cadarço do alemão contra a parede – umas botas
de muitas viagens. As corujas rasgam mortalha a noite toda na copa das altas
árvores do terreno. O facho de luz tenta a densidade das folhas, corre
cinzentos telhados, passa pela torre da capela, detém, ao longe, na janela de
vidro do nosocômio. Em qualquer parte, na noite, estarão as corujas. Elas
rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio, sacudindo a vigília dos
doentes. Recolhem-se, de dia, ao sótão da capela, onde pegam os ratos, que
guincham nas suas garras. Necessário subir ao sótão, desfazer-lhes os ninhos.
Falará com Irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando ela vier para a ala dos
indigentes, ativa, tilintando as chaves no bolso do hábito. Ela mandará que
Antero, jardineiro, trepe ao sótão. Ele é moço e divertido. Torcerá o pescoço
das corujas, com os cabelos cheios de teia de aranha, e as atirará ao pátio do
alto da torre, pilheriando com as enfermeiras. É preciso exterminar as
malditas, que rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na
sombra densa das árvores:
–
Xô, praga!
Resmunga,
conversa sozinho, repete-se. Torna a experimentar as trancas das janelas, teima
em ajeitar os pedaços de lona, que modelam saliências rígidas. O pedaço de lona
do alemão ficou curto como uma camisa: têm presença apenas as botas. Resmunga.
Se pudesse, ele próprio poria uma teia de arame na claraboia. Já falou a Dr.
Joca, que ele trata por você, porque foram criados juntos, e um xinga o outro.
O bisturi do Joca corta sem pressa, profissionalmente. Luvas ensanguentadas,
bigode branco amarelecido pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca no
cinzeiro sobre o peitoril da janela. Secciona pedaços:
–
Leva o balde.
O
velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no
dólmã de mescla.
Quando
o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto da pensão veio fazer
velório ao corpo descarnado do filho, ele lhe deu a lâmpada de pilhas e o
advertiu para as corujas. Elas desciam pela claraboia, mesmo com a luz da
lâmpada. Era preciso manter as velas acesas nos castiçais. Só assim as
desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas. Ficavam rasgando
mortalha no alto das velhas árvores ou na torre da capela. Sem a presença das
velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num sopro de morte: alteiam-se
leves, pousam sobre o peito dos mortos e com o bico arranham-lhes os olhos, que
fulgem parados e indefesos na noite.
Que conto assustdor! Não conhecia, gostei de ler.
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