O
texto abaixo é de autoria de Clarice Lispector.
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maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://www.ebiografia.com/clarice_lispector/.
Boa leitura!EVOLUÇÃO DE UMA MIOPIA
Se
era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade
dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar
satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no
inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais do que ele próprio
daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha
ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia
escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes,
procurando imitara si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo
o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de
mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma
coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso
claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, “como
nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores” — e, como numa
quadrilha de dança de filme de faroeste, cada um teria de algum modo trocado de
par e lugar. Em suma, eles se entendiam, os membros de sua família; e
entendiam-se à sua custa. Fora de se entenderem à sua custa, desentendiam-se
permanentemente, mas como nova forma de dançar uma quadrilha: mesmo quando se
desentendiam, sentia que eles estavam submissos às regras de um jogo, como se
tivessem concordado em se desentenderem.
Às
vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as que
haviam provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era propriamente para
reproduzir o sucesso passado, nem propriamente para provocar o movimento mudo
da família. Mas para tentar apoderar-se da chave de sua “inteligência”. Na
tentativa de descoberta de leis e causas, porém, falhava. E, ao repetir uma
frase de sucesso, dessa vez era recebido pela distração dos outros. Com os
olhos pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por
que uma vez conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada
pela falta de disciplina alheia?
Mais
tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria, entrou por um
estado de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o hábito de
pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo que franzia o
nariz, o que deslocava os óculos — exprimindo com esse cacoete uma tentativa de
substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a
própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de estática: sempre fora
capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se transformasse
em outro sentimento. Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda
menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz,
deslocavam os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos
poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranqüila miopia exigindo lentes
cada vez mais fortes.
Por
estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de
permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não
está com ninguém — foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e
vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco nervoso, diziam,
referindo-se ao tique dos óculos. Mas “nervoso” era o nome que a família estava
dando à instabilidade de julgamento da própria família. Outro nome que a
instabilidade dos adultos lhe dava era o de “bem comportado”, de “dócil”. Dando
assim um nome não ao que ele era, mas à necessidade variável dos momentos.
Uma
vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo
brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração. Foi, por exemplo, quando
lhe disseram que daí a uma semana ele iria passar um dia inteiro na casa de uma
prima. Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. “Dia
inteiro” incluía almoço, merenda, jantar, e voltar quase adormecido para casa.
E quanto à prima, a prima significava amor extra, com suas inesperadas
vantagens e uma incalculável pressurosidade — e tudo isso daria margem a que
pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa dela, tudo aquilo que ele era
teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o amor, mais facilmente
estável de apenas um dia, não daria oportunidade a instabilidades de julgamento:
durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino.
Na
semana que precedeu “o dia inteiro”, começou por tentar decidir se seria ou não
natural com a prima. Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa
inteligente — o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como
inteligente. Ou se faria, logo de entrada, algo que ela julgasse “bem
comportado”, o que faria com que durante o dia inteiro ele seria o bem
comportado. Ter a possibilidade de escolher o que seria, e pela primeira vez
por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante. Aos poucos,
durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi se alargando. E,
com a capacidade que tinha de suportar a confusão — ele era minucioso e calmo
em relação à confusão — terminou descobrindo que até poderia arbitrariamente decidir
ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo. Ou que poderia passar esse dia
de um modo bem triste, se assim resolvesse. O que o tranqüilizava era saber que
a prima, com seu amor sem filhos e sobretudo com a falta de prática de lidar
com crianças, aceitaria o modo que ele decidisse de como ela o julgaria. Outra
coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria
realmente alterá-lo. Pois prematuramente — tratava-se de criança precoce — era
superior à instabilidade alheia e à própria instabilidade. De algum modo
pairava acima da própria miopia e da dos outros. O que lhe dava muita
liberdade. Às vezes apenas a liberdade de uma incredulidade tranqüila. Mesmo
quando se tornou homem, com lentes espessíssimas, nunca chegou a tomar
consciência dessa espécie de superioridade que tinha sobre si mesmo.
A
semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às vezes seu
estômago se apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos ele estaria
totalmente à mercê do amor sem seleção de uma mulher. “Amor sem seleção”
representava uma estabilidade ameaçadora: seria permanente, e na certa
resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A estabilidade,
já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no primeiro
passo da estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem da
instabilidade, que é a de uma correção possível.
Outra
coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da
prima, além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de poder de vez
em quando ir ao banheiro, o que faria o tempo passar mais depressa. Mas, com a
prática de ser amado, já de antemão o constrangia que a prima, uma estranha
para ele, encarasse com infinito carinho as suas idas ao banheiro. De um modo
geral o mecanismo de sua vida se tornara motivo de ternura. Bem, era também
verdade que, quanto a ir ao banheiro, a solução podia ser a de não ir nenhuma
vez ao banheiro. Mas não só seria, durante um dia inteiro, irrealizável como — como
ele não queria ser julgado “um menino que não vai ao banheiro” — isso também
não apresentava vantagem. Sua prima, estabilizada pela permanente vontade de
ter filhos, teria, na não ida ao banheiro, uma pista falsa de grande amor.
Durante
a semana que precedeu “o dia inteiro”, não é que ele sofresse com as próprias
tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele já havia dado:
aceitara a incerteza, e lidava com os componentes da incerteza com uma
concentração de quem examina através das lentes de um microscópio.
À
medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se
sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de
decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe desse
temporariamente a certeza de “quem ele era”. Abandonou essas cogitações e
passou a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da prima, sobre o
tamanho do pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas que abriria
enquanto ela não visse. E finalmente entrou no campo da prima propriamente
dita. De que modo devia encarar o amor que a prima tinha por ele?
No
entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do lado
esquerdo.
E
foi isso — ao finalmente entrar na casa da prima — foi isso que num só instante
desequilibrou toda a construção antecipada. O resto do dia poderia ter sido
chamado de horrível, se o menino tivesse a tendência de pôr as coisas em termos
de horrível ou não horrível. Ou poderia se chamar de “deslumbrante”, se ele
fosse daqueles que esperam que as coisas o sejam ou não.
Houve
o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a segurança que ele
encontrava na idéia de uma imprevisibilidade permanente, tanto que até usava
óculos, não se tornou inseguro pelo fato de encontrar logo de início algo com
que não contara.
Em
seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não começou por ser
evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera com uma
naturalidade que inicialmente o insultara, mas logo depois não o insultara
mais. Ela foi logo dizendo que ia arrumar a casa que ele podia ir brincando. O
que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio de sol.
Lá
pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da
inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele
dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria
observação sobre as plantas recebeu em resposta um “pois é”, entre vassouradas
no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria
brincar de “não ser julgado”: por um dia inteiro ele não seria nada,
simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade.
Mas
à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo
sentir. E quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço, a comida
foi puro amor errado e estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou
com curiosidade ao gosto estranho daquela comida, talvez marca de azeite
diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que não parecia com o
amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a
gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor sem a
prévia gravidez. Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor
impossível.
O
dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O
dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no
ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de
óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu
uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. A
estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser
votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração
pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez
teve então amor pela paixão.
E
foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais
profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria.
Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos,
e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então
que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e
ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem
óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.
Esses contos de Clarice Lispector, eu sempre leio com muita atenção. Gostei desse.
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