sexta-feira, 2 de agosto de 2024

SESSÃO LEITURA - UM POETA LÍRICO - EÇA DE QUEIROZ

O texto abaixo é de autoria de Eça de Queiroz.
Para saber mais sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/eca_queiroz/.
Boa leitura!

UM POETA LÍRICO

Aqui está, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a história triste do poeta Korriscosso. De todos os poetas líricos de que tenho notícia, é êste, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel de Charing-Cross, uma madrugada regelada de dezembro. Tinha eu chegado do continente, prostrado por duas horas de Canal da Mancha... Ah! que mar! E era só uma brisa fresca de Noroeste: mas ali, no tombadilho, sob uma capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo morto, fustigado da neve e da vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo aos roncos e aos encontrões— parecia-me um tufão dos mares da China...
Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogão do perístilo, e ali fiquei, saturando-me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa brasa escarlate... E foi então que vi aquela figura esguia e longa, já de casaca e gravata branca, que do outro lado da chaminé, de pé, com a taciturna tristeza duma cegonha que scisma, olhava tambêm os carvões ardentes, com um guardanapo no braço. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu fui inscrever-me ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura, com um perfil antiquado de medalha safada, pousou o seu crochet ao lado da sua chávena de chá, acariciou com um gesto doce os dois bandós louros, assentou correctamente o meu nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia subir a vasta escadaria,— quando a figura magra e fatal se dobrou num ângulo, e murmurou-me num inglês silabado:
— Já está servido o almôço das sete...
Mas eu não queria o almôço das sete. Fui dormir.
Mais tarde, já repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lunch, avistei logo, plantado melancólicamente ao pé da larga janela, o indivíduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz parda; os fogões flamejavam; e fóra, no silêncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caía sem cessar dum ceu amarelento e baço. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e um pouco dobrada uma expressão tam evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O cabelo comprido, de tenor, caído sôbre a gola da casaca, era, manifestamente, dum meridional; e toda a sua magreza friorenta se encolhia ao aspecto daqueles telhados cobertos de neve, na sensação daquele silêncio lívido... Chamei-o. Quando êle se voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na véspera, impressionou-me: era um carão longo e triste, muito moreno, de nariz judaico e uma barba curta e frisada, uma barba de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama, creio eu, fronte; era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com uma indecisão de sonho nadando num fluido enternecido... E que magreza! quando andava, a calça curta torcia-se em tôrno da canela como pregas de bandeira em tôrno dum mastro: a casaca tinha dobras de túnica ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraçadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu almôço, sem me olhar, num tédio resignado: arrastou-se para o comptoir onde o maître de hotel lia a Bíblia, passou a mão pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:
— Nùmero 307. Duas costeletas. Chá...
O maître de hotel afastou a Bíblia, inscreveu o menu— e eu acomodei-me à mesa, e abri o volume de Tennyson que trouxera para almoçar comigo— porque, creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e sem pão fresco. Fóra continuava a nevar sôbre a cidade muda. A uma mesa distante, um vélho côr de tijolo e todo branco de cabelo e de suíças, que acabara de almoçar, dormitava de mãos no ventre, bôca aberta, e luneta na ponta do nariz. E o único som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte que à esquina defronte garganteava um psalmo... Um domingo de Londres.
Foi o magro que me trouxe o almôço— e apenas êle se aproximou, com o serviço do chá, eu senti logo que aquele volume de Tennyson nas minhas mãos o tinha interessado e impressionado: foi um olhar rápido, gulosamente fixado na página aberta, um estremecimento quási imperceptível,— emoção fugitiva, de-certo, porque depois de ter pousado o serviço, rodou sôbre os calcanhares e foi plantar-se, melancólicamente, à janela, de ôlho triste e posto na neve triste. Eu atribuí aquele movimento curioso ao esplendor da encadernação do volume, que eram os Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de Lançarote do Lago— o pelicano de oiro sôbre um mar de sinopla.
Nessa noite parti no expresso para a Escócia, e ainda não tinha passado York, adormecida na sua gravidade episcopal, já me esquecera o criado romanesco do restaurante de Charing-Cross. Foi só daí a um mês, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal atravessar com um prato de roast-beef numa das mãos e na outra um puding de batata, senti renascer o antigo interesse. E nessa noite mesmo, tive a singular felicidade de saber o seu nome e de entrever um fragmento do seu passado. Era já tarde e eu voltava do Covent-Garden, quando no perístilo do hotel encontrei, majestoso e próspero, o meu amigo Bracolletti.
Não conhecem Bracolletti? A sua presença é formidável; tem a amplidão pançuda, o negro cerrado da barba, a lentidão, o cerimonial dum pachá gordo; mas esta ponderosa gravidade turca é temperada, em Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais da Síria: é o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raças que dão os Messias... Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti é a mais complexa, a mais perfeita, a mais rica das expressões humanas; há finura, inocência, bonomia, abandono, ironia doce, persuasão, naqueles dois lábios que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes de virgem... Ah! mas tambêm êste sorriso é a fortuna de Bracolletti.
Moralmente, Bracolletti é um hábil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; é tudo o que êle revela: de resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabeça de ombro a ombro, esconde sob as palpebras cerradas com bonomia o seu ôlho maometano, desabrocha o sorriso duma doçura de tentar abelhas, e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:
— Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu!...
Nada mais. Parece, porêm, que viajou,— porque conhece o PerU, a Crimeia, o Cabo da Boa-Esperança, os países exóticos— tam bem como Regent-Street: mas é evidente para todos que a sua existência não foi tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de oiro e estôpa, de esplendores e pelintrices: é um gordo e, portanto, um prudente: o seu magnífico solitário nunca deixou de lhe brilhar no dedo: nenhum frio jàmais o surpreendeu sem uma pelissa de dois mil francos: e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Club, de que é um membro querido, dez libras ao whist. É um forte.
Mas tem uma debilidade. É singularmente guloso de rapariguinhas de dôze a catorze anos: gosta delas magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Coleciona-as pelos bairros pobres de Londres, com método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola, metendo-lhes a papinha no bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os shillings da algibeira, gozando o desenvolvimento dos vícios naquelas flores, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para que os anjinhos se embebedem;— e quando alguma, excitada de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o injuría, o arrepela, baba obscenidades,— o bom Bracolletti, encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa síria.
— Piccolina! Gentilleta!
Querido Bracolletti! Foi, realmente, com prazer, que o abracei, nessa noite, em Charing-Cross: e como nos não víamos há muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste lá estava no seu comptoir, curvado sôbre o Journal des Debats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade de obeso, o homem estendeu-lhe silenciosamente a mão; foi um shake-hands solene, enternecido e sincero.
Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e vibrando de curiosidade, interroguei-o com sofreguidão. Quis primeiro o nome do homem.
— Chama-se Korriscosso— disse-me Bracolletti, grave.
Quis depois a sua história. Mas Bracolletti, como os deuses da Ática que, nos seus embaraços no mundo, se recolhiam à sua nuvem, Bracolletti refugiou-se na sua vaga reticência.
— Eh! mon Dieu!... Eh! mon Dieu!...
— Não, não, Bracolletti. Vejâmos. Quero-lhe a história... Aquela face fatal e baironeana deve ter uma história...
Bracolletti então tomou todo o ar cândido que lhe permitem a sua pança e as suas barbas— e confessou-me, deixando cair as frases às gotas, que tinham viajado ambos na Bulgária e no Montenegro... Korriscosso foi seu secretário... Boa letra... Tempos difíceis... Eh! mon Dieu!...
— De onde é êle?
Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz com um gesto repassado de desconsideração:
— É um grego de Atenas.
O meu interesse sumiu-se como a água que a areia absorve. Quando se tem viajado no Oriente e nas escalas do Levante, adquire-se fácilmente o hábito, talvez injusto, de suspeitar do grego: aos primeiros que se vêem, sobretudo tendo uma educação universitária e clássica, o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre, e perfilam-se na imaginação as linhas augustas do Pártenon. Mas, depois de os ter freqùentado, às mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e principalmente depois de ter escutado a lenda de velhacaria que êles tem deixado desde Esmirna até Túnis, os outros que se vêem provocam, apenas, êstes movimentos: abotoar rápidamente o casaco, cruzar fortemente os braços sôbre a cadeia do relógio, e aguçar o intelecto para rechassar a escroquerie. A causa desta reputação funesta é que a gente grega, que emigra para as escalas do Levante, é uma plebe torpe, parte pirata e parte lacaia, bando de rapina astuto e perverso. A verdade é que apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me logo que o meu belo volume de Tennyson, na minha última estada em Charing-Cross, me desaparecera do quarto, e recordei o olhar de gula e de prêsa que cravara nele Korriscosso... Era um bandido!
E durante a ceia não falamos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e são. O lúgubre Korriscosso não se afastou do comptoir abismado no Journal des Debats.
Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi... O hotel estava atulhado, e eu tinha sido alojado naqueles altos de Charing-Cross, numa complicação de corredores, escadas, recantos, ângulos, onde é quási necessário roteiro e bússola.
De castiçal na mão, penetrei num passadiço onde corria um bafo morno de viela mal arejada. As portas aí não tinham números, mas pequenos cartões colados onde estavam inscritos nomes: John Smith, Charlie, Willie... Emfim, eram evidentemente as habitações dos criados. De uma porta aberta saía a claridade de um bico de gás; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma mesa alastrada de papeis, de testa pendida sôbre a mão, escrevendo.
— Pode-me indicar o caminho para o número 508?— balbuciei.
Êle ergueu para mim um olhar estremunhado e ennevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um outro universo; batia as pálpebras, repetindo:
— 508? 508?...
Foi então que eu avistei, sôbre a mesa, entre papeis, colarinhos sujos e um rosário— o meu volume de Tennyson! Êle viu o meu olhar, o bandido! e acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo logo à moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um dedo severo, um dedo de Providência irritada, disse-lhe:
— É o meu Tennyson...
Não sei que resposta êle tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado tambêm pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:
— Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou...
Korriscosso corou mais: mas não era o despeito humilhado do salteador surpreendido: era, julguei eu, a vergonha de ver a sua inteligência, o seu gôsto poético adivinhados— e de ter no corpo a casaca coçada de criado de restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri, responderam por êle; a brancura das margens largas desaparecia sob uma rêde de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino!— palavras lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma sensibilidade vibrante...
No entanto, Korriscosso permanecia de pé, respeitoso, culpado, de cabeça baixa, com o laço da gravata branca fugindo para o cachaço. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo um passado sem sorte, tantas tristezas de dependência... Lembrei-me que nada impressiona o homem do Levante como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mãos num movimento à Talma, e disse-lhe:
— Eu também sou poeta!...
Esta frase extraordinária pareceria grotesca e impudente a um homem do Norte; o levantino viu logo nela a expansão de uma alma irmã. Porque, não lhes disse? o que Korriscosso estava escrevendo, numa tira de papel, eram estrofes: era uma ode.
Daí a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua história— ou antes fragmentos, anedotas desirmanadas da sua biografia. É tam triste, que a condenso. De resto, havia na sua narração lacunas de anos;— e eu não posso reconstituir com lógica e seqùência a história dêste sentimental. Tudo é vago e suspeito. Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu. Aos 18 anos Korriscosso servia de criado a um médico, e nos intervalos do serviço freqùentava a Universidade de Atenas; estas coisas são freqùentes là-bas, como êle dizia. Formou-se em leis: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difíceis, a ser um intérprete de hotel. Dêsse tempo datam as suas primeiras elégias num semanário lírico intitulado Ecos da Ática. A literatura levou-o directamente à política e às ambições parlamentares. Uma paixão, uma crise patética, um marido brutal, ameaças de morte, forçaram-no a expatriar-se. Viajou na Bulgária, foi em Salónica empregado numa sucursal do Banco Otomano, remeteu endechas dolorosas a um jornal da província— a Trombeta da Argólida. Aqui há uma dessas lacunas, um buraco negro na sua história. Reaparece em Atenas, com fato novo, liberal e deputado.
Êste período de glória foi breve, mas suficiente para o pôr em evidência; a sua palavra colorida, poética, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas: tinha o segredo de florir, como êle dizia, os terrenos mais áridos; duma discussão de imposto ou de viação fazia saltar éclogas de Teócrito. Em Atenas êste talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma alta administração do Estado: o ministério, porêm, e com êle a maioria de que Korriscosso era o tenor querido, caíram, sumiram-se sem lógica constitucional, num dêstes súbitos desabamentos políticos tam comuns na Grécia, em que os governos se aluem, como as casas em Atenas— sem motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de individualidades... Tudo tende para o pó num solo de ruinas...
Nova lacuna, novo mergulho obscuro na história de Korriscosso...
Volta à superfície, membro de um club rèpublicano de Atenas, pede num jornal a emancipação da Polónia, e a Grécia governada por um concílio de génios. Publíca então os seus Suspiros da Trácia. Tem outro romance de coração... E emfim— e isto disse-mo sem explicações— é obrigado a refugiar-se em Inglaterra. Depois de tentar em Londres várias posições, coloca-se no restaurant de Charing-Cross.
— É um pôrto de abrigo— disse-lhe eu, apertando-lhe a mão.
Êle sorriu com amargura. Era de-certo um pôrto de abrigo, e vantajoso. É bem alimentado; as gorgetas são razoáveis; tem um vélho colxão de molas,— mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento, dolorosamente feridas...
Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a distribuir numa sala, a burgueses estabelecidos e glutões, costeletas e copos de cerveja! Não é a dependência que o aflige; a sua alma de grego não é particularmente ávida de liberdade, basta-lhe que o patrão seja cortês. E, como êle me disse, é-lhe grato reconhecer que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer if you please; e quando saem, ao passar por êle, levam dois dedos à aba do chapéu: isto satisfaz a dignidade de Korriscosso.
Mas o que o tortura é o contacto constante com o alimento. Se êle fôsse um guarda-livros de um banqueiro, primeiro caixeiro de um armazêm de sêdas... Nisso há uma sombra de poesia— os milhões que se revolvem, as frotas mercantes, a brutal fôrça do oiro, ou então dispôr ricamente os estofos, os cortes de sêda, fazer correr a luz nas ondulações dos moirés, dar ao veludo as molezas da linha e da prega... Mas num restaurante como se pode exercer o gôsto, a originalidade artística, o instinto da côr, do efeito, do drama— a partir nacos de roast-beef ou de presunto de York?!... Depois, como êle disse, dar a comer, fornecer alimento, é servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma fica fóra, com o chapéu que se pendura no cabide ou com o rôlo de jornais que se deixou no bôlso do paletot.
E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para êle senão para lhe pedirem salame ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para perguntar:— Mais pão? mais bife?— Esta privação de eloqùência é-lhe dolorosa.
Alêm disso o serviço impede-lhe o trabalho. Korriscosso compõe de memória; quatro passeios pelo quarto, um repelão ao cabelo, e a ode sai-lhe harmoniosa e doce.... Mas a interrupção glutona da voz do freguês, pedindo nutrição, é fatal a esta maneira de trabalhar. Às vezes, encostado a uma janela, de guardanapo no braço, Korriscosso está fazendo uma elégia; são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas, horizontes celestes, flores de alma dolorida... É feliz; está remontado aos céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de estrêla em estrêla... De repente, uma grossa voz faminta berra dum canto:
— Bife e batatas!
Ai! as aladas fantasias batem o vôo como pombas espavoridas! E aí vem o infeliz Korriscosso, precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca balouçando, perguntar com o sorriso lívido:
— Passado ou meio crú?
Ah! é um amargo destino!
— Mas— perguntei-lhe eu— porque não deixa êste covil, êste templo do ventre?
Ele deixou pender a sua bela cabeça de poeta. E disse-me a razão que o prende: disse-ma, quási chorando nos meus braços, com o nó da gravata branca no cachaço: Korriscosso ama.
Ama uma Fanny, criada de todo o serviço em Charing-Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braços roliços nus, e os cabelos louros, os fatais cabelos louros, dêste louro que entontece os meridionais, cabelos ricos, de um tom de cobre, dum tom de oiro mate, torcendo-se numa trança de deusa. E depois a carnação, uma carnação de inglesa do Yorkshire— leite e rosas...
E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a em odes— que passa a limpo ao domingo, dia de repouso e dia do Senhor! Leu-mas. E eu vi quanto a paixão pode perturbar um ser nervoso: que ferocidade de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremesados dali, daqueles altos de Charing-Cross, para a mudez do céu frio! É que Korriscosso tem ciumes. A desgraçada Fanny ignora aquele poeta a seu lado, aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policeman. Ama um policeman, um colosso, um alcides, uma montanha de carne erriçada duma floresta de barbas, com o peito como o flanco de um couraçado, com pernas como fortalezas normandas. Êste Polifemo, como diz Korriscosso, tem, ordináriamente, serviço no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreitá-lo de um postigo, dos altos do hotel.
Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que à noite lhe leva em copinhos debaixo do avental: mantem-no fiel pelo álcool; o monstro, plantado enormemente a uma esquina, recebe em silêncio o copo, atira-o de um golpe às fauces tenebrosas, arrota cavamente, passa a mão cabeluda pela barba de hércules, e segue taciturnamente, sem um obrigado, sem um amo-te, batendo o lagedo com a vastidão das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa... E talvez nesse momento, à outra esquina, o magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relêvo de poste telegráfico, soluce com a face magra entre as mãos transparentes.
Pobre Korriscosso! Se êle ao menos a pudesse comover... Mas quê! Ela despreza-lhe o corpo de tísico triste: e a alma não lha compreende... Não que Fanny seja inacessível a sentimentos ardentes, expressos em linguagem melodiosa. Mas Korriscosso só pode escrever as suas elégias na sua língua materna... E Fanny não compreende grego... E Korriscosso é só um grande homem— em grego...
Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluçando sôbre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes, ao passar em Londres. Está mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se move pelo restaurante com a travessa do roast-beef, mais exaltado no seu lirismo... Sempre que êle me serve dou-lhe um shilling de gorgeta: e depois, ao retirar, aperto-lhe sinceramente a mão.

Fonte: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=129187#UMPOETAL%C3%8DRICO.

Nenhum comentário:

Postar um comentário