O
texto abaixo é de autoria de Lêdo Ivo.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2861/ledo-ivo.
Boa
leitura!
O
ALUNO RELAPSO
Eu
era o primeiro da aula; ele, o último.
Cumulado
pelos elogios dos professores e o orgulho familiar, eu invejava, do fundo do
coração, o colega turbulento sentado emblematicamente no último banco.
Ele
fumava nos recreios, desafiando o olhar suspeitoso dos vigilantes (e, entre tragadas
enérgicas, proclamava atrevidamente a inexistência de Deus), envolvia-se em
episódios truculentos, vangloriava-se de proezas sexuais nem sempre ortodoxas.
Seu rendimento escolar era praticamente nulo e os professores, irmãos maristas,
submetiam-no a continuados exercícios de humilhação. Mas eu o invejava; ele
significava, para mim, a aventura e a transgressão.
Uma
tarde de domingo, o acaso nos fez caminhar juntos pelas ruas da cidade. Não
lembro o que conversamos — do longo passeio, que só terminou ao sol-posto,
ficou apenas a recordação de que ele me ofereceu um cigarro, por mim recusado.
O
encontro inesperado repercutiu na mesa familiar e chegou aos ouvidos dos irmãos
maristas, pela boca de alguns piedosos delatores. Fui advertido de que deveria
evitar a companhia indigna, licenciosamente aparelhada para desviar-me dos
estudos e do bom caminho.
Da
avalancha de notas más que lhe juncou a trajetória escolar, resultou a sua
reprovação, no fim do ano. Perdi-o de vista.
Quarenta
anos depois, numa viagem a Maceió, voltei a encontrar o aluno relapso. Ele
pertencia à nobre linhagem dos alagoanos que, amando a terra natal como as
cobras amam seus ninhos de pedra, não emigram. Era professor de Direito e
desembargador, rico e respeitado, de tendências políticas cerradamente
conservadoras ou mesmo autoritárias. Considerava a religião um freio
indispensável para sustar os desatinos humanos, e entendia que só o pulso forte
das instituições militares tinha o poder de conjurar a vocação deletéria da
sociedade civil e evitar a anarquia nacional.
O
desenho final não correspondera ao rascunho da adolescência. Nem sequer fumava,
como se os cigarros furtivos do tempo do colégio tivessem sido incluídos na sua
lista de condenações e olvidos.
Vivre
avilit — foi esta frase de Henri de Régnier que ressoou na minha memória no
instante em que o vi passar, severo e compassado, rumo ao Tribunal de Justiça.
O Rimbaud sem gênio se convertera num intolerante julgador de outros homens.
A
vida rouba os nossos sonhos, mas há algo que a grande ladra não consegue levar.
A deserção formidável fizera de mim o herdeiro do aluno relapso. O sentimento
de aventura e transgressão, de que ele se despojara em sua metamorfose
espiritual, passara a ser meu.
Eu
desmentira os vaticínios que rodeavam a minha austera reputação de primeiro da
aula, tornando-me um poeta, e era agora, na idade madura, o aluno relapso que
secretamente desejara ser na adolescência.
O
ato de viver não me envileceu.
Muito lindo, amei ler! Quem somos nós pra prever o futuro de uma criança...
ResponderExcluirBela crônica!
ResponderExcluirA vida nos tira a seiva elaborada...
ResponderExcluir