O
texto abaixo é de autoria de Érico Veríssimo.
Para
saber mais sobre o autor, favor acessar: http://www.releituras.com/everissimo_bio.asp.
Boa
leitura!
O
NAVIO DAS SOMBRAS
É
noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente muito
frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai viajar. Mas é
estranho... Tudo parece diferente do que ele sempre imaginara. O grande
transatlântico se desenha sem contornos certos contra o céu de fuligem. Não se
vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se, entretanto, na treva, a presença
rígida e gelada dos guindastes.
Os
minutos passam. Ivo olha. Sim, agora vê com mais clareza a silhueta do grande
barco. A grande Viagem! O seu sonho vai se realizar. Ficarão para trás todas as
suas angústias. É uma libertação. Devia estar alegre, sacudir os braços,
correr, gritar. Mas uma opressão estranha o paralisa. Que é isto? Onde estão os
outros passageiros? Onde se meteu a tripulação? É inquietante este silêncio
noturno. E pavorosa esta sombra glacial que envolve tudo. Ivo quer lançar ao ar
uma palavra. Pronuncia bem alto seu próprio nome. O som morre sem eco. O
silêncio persiste. Então ele começa a sentir um mal-estar que nem a si mesmo
consegue explicar.
Divisa
aos poucos, vultos imóveis na amurada do paquete. Parecem guardas petrificados
dum barco fantasma. Por que não se movem? Por que não falam? A esta hora a
orquestra de bordo devia estar tocando uma marcha festiva. Carregadores
gritando. Passageiros, empregados de hotel, agentes da companhia de navegação,
guardas — muita gente devia andar pelo cais num formigamento sonoro. No entanto
reina o mais espesso silêncio... Ivo dá dois passos e é tomado duma esquisita
sensação de leveza. Caminha sem o menor esforço. E como se não encontrasse
nenhuma resistência no ar, como se suas pernas fossem de algodão.
Mete
a mão no bolso. Sim, ali está a sua passagem. Fica mais tranqüilo e encorajado.
Pode embarcar. Deve embarcar... Seria decepcionante perder o navio...
Dirige-se
para a prancha. Hesita um instante antes de partir, porque a seus ouvidos soa,
muito fraca, muito abafada, uma voz amiga.
—
Ivo, Ivo querido, não me abandones! Inexplicável. De onde veio a voz? Volta a
cabeça para os lados, procurando. Só encontra a escuridão fria e inimiga, O
navio apita. Um som soturno, grave e prolongado, enche a grande noite. E uma
queixa, quase um choro e, apesar disso, tem um certo tom de ameaça. Nesse apito
rouco Ivo sente o pavor do oceano desconhecido na noite negra, a angústia dos
navios perdidos a pedirem socorro, a aflição dos náufragos, o horror das
profundezas do mar. O apito uivante e áspero parece feito dos gritos de todos
os afogados, de todos os mares.
Ivo
sente-se desfalecer de medo.
—
Meu Ivo, por que foi? Por que foi?
Outra
vez a voz. Ivo estremece. De onde vem aquela voz? Na amurada, os
vultos
continuam imóveis. Nenhum deles podia ter falado assim com aquela ternura longínqua.
Porque eles devem ter uma voz cavernosa de pedra.
Parado
ao pé da prancha, Ivo olha para o alto. Vê um homem na extremidade superior da
escada. Está de pernas abertas, braços cruzados, olhando para baixo. Ivo não
lhe pode distinguir £s feições. Mas é curioso, ele sente a força de dois olhos
magnéticos que o fitam. E aquele olhar é um chamado, uma ordem.
Começa
a subir. Lembra-se de um trecho de antologia da sua infância. André Chenier
subindo as escadas do cadafalso. Sim, ele sente que vai ser guilhotinado. Lá em
cima está o carrasco. Ou será apenas o capitão? Ivo sobe. Um, dois, três,
quatro degraus ... O frio aumenta, Ivo começa a tiritar. Cinco, seis, sete.
Sente uma fraqueza, uma tontura. Subiu apenas sete degraus, mas agora o cais está
tão longe de seus pés, que ele tem a sensação de se encontrar no alto duma
torre altíssima. O vento sopra gelado como a face dum morto. Mas por que lhe
vêm com tanta insistência esses pensamentos macabros? Esta não é então a
Viagem, a sua desejada aventura transoceânica? Deve então alegrar-se, cantar .
. . Procura assobiar uma ária alegre. Mas o vento lhe impõe silêncio. Ivo sobe
sempre . . . Quando senta o pé no navio, não vê mais o capitão. Volta os olhos
e só enxerga a noite, a grande noite, a densa noite.
Por
que não acendem as luzes deste navio? Senhores, as luzes! Outros vultos passam.
Mulheres, homens, crianças. É aflitivo. Ivo não lhes pode ver os rostos. E o
silêncio apavorante!...
Ivo
se aproxima dum homem que se acha encostado à amurada.
—
Por favor, meu amigo, pode me dizer se este vapor é o...
Cala-se.
É assustador. Ele não sabe o nome do barco em que entrou. Como foi isso? Não se
trata então duma viagem, da "sua" desejada viagem, por tanto tempo
planejada e acariciada? Por que tudo agora está tão esfumado e confuso, como se
sobre sua memória tivesse caído um véu? Ivo começa a suar. O suor lhe escorre
pelo rosto em bagas frias.
—
Pode me dizer onde fica o bar?
Sim,
precisa tomar uma bebida qualquer. Deve ser o frio que o deixa assim tão sem
memória, tão fraco e trêmulo.
—
Cavalheiro, pode me dizer onde fica o sol?
O
sol? Mas ele não queria perguntar onde ficava o sol. Jurava que ia
perguntar
onde ficava o bar.
—
Por favor, cavalheiro...
O
vulto se move sem o menor ruído e some-se na sombra.
Ivo
treme dos pés à cabeça. "Preciso encontrar o meu camarote" diz para
si mesmo — "preciso descobrir a minha bagagem" — pensa, numa
crescente aflição. — "Deve existir alguém a bordo que possa me explicar.
Talvez um doutor... Sim. Estou doente..."
E
agora ele tem consciência duma dor, não aguda mas continuada e martelante, bem
no lado esquerdo do peito. Leva a mão ao coração. Retira-a úmida. Será sangue ?
Sim, deve ser...
Sai
a correr apavorado. Um médico! Um médico! Estou ferido, vou morrer,
socorro!
Mas suas pernas, de tão leves, agora se vergam. Ivo pára. Ajoelha-se e grita
ainda: Um médico! Mas não consegue ouvir a própria voz. Ergue-se, agoniado.
Homens, mulheres e poucas crianças continuam a passar. São ainda sombras sem
vozes nem gestos.
Ivo
procura orientar-se na escuridão. Parece-lhe agora enxergar contornos mais
nítidos. Sim. Ali está uma porta. Um corredor. Se ele entrar no corredor talvez
ache o seu camarote. Tem agora vagamente a lembrança dum número. 27... 27...
Recorda-se de tê-lo visto impresso em algarismos negros sobre um quadro branco.
27... Onde?
De
repente tem a impressão de que na memória se lhe abre uma clareira por onde ele
enxerga o passado. Mas é apenas um relâmpago. De novo cai a névoa. Já não lhe
dói mais o peito. Tudo deve ter sido ilusão ... ele não está ferido. As sombras
passam. A bruma que vem do mar invade o navio. Onde estará o capitão? O frio e
o silêncio persistem. O barco misterioso torna a soltar um gemido rouco e
prolongado. Mas - é incrível, incompreensível, endoidecedor — nem o apito
consegue quebrar o silêncio.
Ivo
caminha sem destino. Não ouve o ruído dos próprios passos. Não tropeça em nada.
Aproxima-se da amurada e olha o mar. Só vê a escuridão velada duma bruma de cor
doentia.
Um
homem se aproxima dele. Ivo olha-lhe o rosto.. Já se lhe distinguem alguns
traços. Decerto o hábito da escuridão. Céus, mas que rosto pálido! Parece a
cara dum cadáver. A pele está ressequida e tem um tom esverdeado. Os olhos, parados
e sem brilho. Os dentes arreganhados...
Agora
aparecem outras faces. Uma criança sorrindo um sorriso horrendo. Uma mulher com
os olhos furados escorrendo sangue. Um velho com a boca queimada de ácido. Ivo
solta um grito... Mas o silêncio continua. Onde estarei? — pensa ele. — Onde
estarei? Faz um esforço dolorido para se lembrar.
Quem
sou eu? Como foi que vim parar aqui? Onde estão os meus amigos, as pessoas que
eu via todos os dias?
O
frio aumenta. Ivo sente-se desfalecer. Tem a impressão de estar boiando
nas
ondas dum mar gelado, como um náufrago; como um iceberg...
Camarote
27! — diz Ivo, - 27... 27... — Seus lábios se movem, mas nenhum som perturba o
silêncio do grande barco e da enorme noite.
De
repente uma onda morna lhe invade o corpo. Pela proa do navio começa a nascer
uma luz, pálida a princípio, mas a pouco e pouco se fazendo mais viva e
dourada. Os olhos de Ivo se agradam. Aquela luminosidade vai ser a explicação
de tudo, a volta da memória... Sim, ele vai descer pela prancha e ganhar o cais.
O cais também é negro e silencioso. Mas não há nada como a terra firme. Ele não
quer viajar neste vapor tenebroso cujos passageiros são fantasmas. O mar
desconhecido é um pavor na noite. Oh Deus! - pensa Ivo - como foi que eu
cheguei a desejar esta viagem!? Que louco! Que louco! A luz cresce. O calor
aumenta. A voz amiga se ouve mais forte: "Ivo, meu querido, fica
comigo!" Sim, ele quer ficar. E preciso fugir do capitão do barco noturno.
Ivo dá dois passos para a luz.
Ajoelhada
ao pé da cama a moça aperta e beija a mão pálida do rapaz.
—
Ivo, não quero que morras, não quero. Por que foi que fizeste isso? Por que
foi?
Com
a seringa de injeção numa das mãos, o médico contempla o rosto pálido do
suicida. Pobre diabo! Perdeu tanto sangue... O corpo está quase frio.
A
um canto do quarto, a dona da casa, torcendo o avental, olha muito assustada
para a cama. "Por causa do que me devia, ele não precisava fazer isso. Eu
podia esperar. Não tinha importância. Deus me perdoe. Se eu soubesse, não
tinha vindo hoje trazer a conta. Logo hoje, Nossa Senhora!"
Ao
pé da janela, o porteiro da casa conversa com um agente de polícia.
—
De onde era ele?
—
Do interior.
—
Tinha família?
O
porteiro encolhe os ombros.
—
Era um moço muito calmo, muito delicado. Andava sem emprego. Eu dizia para ele
que tivesse paciência. Mas qual! Não aguentou... Há gente nervosa.
Falam
já de Ivo como quem fala dum morto. O médico aproxima-se do grupo.
—
Fiz uma tentativa desesperada. Injetei-lhe adrenalina no coração. — Sacode a
cabeça. — Não tenho muita esperança. Enfim... acontecem milagres...
Ao
ouvir a palavra milagre a velha começa a rezar.
De
repente a moça se ergue, como que impelida por uma mola.
—
Doutor! Ele está se mexendo... venha! Venha! Os três homens se aproximam da
cama. O rosto de Ivo se move, seus olhos se entreabrem. Há um breve instante de
aflitiva esperança. Ivo como que se baloiça, indeciso, por sobre as tênues
fronteiras que separam a vida da morte.Mas parece haver do outro lado um
chamado mais forte. O corpo se imobiliza.
O
doutor inclina-se e ausculta-lhe o coração. Olha para a moça e diz, baixinho:
—
Sinto muito. Mas não há mais nada a fazer.
A
dona da casa desata a chorar. Com o rosto contraído numa expressão mais de
estupefação que de dor, a rapariga olha do médico para o morto, do morto para a
folhinha da parede, onde o número 27 em letras negras se destaca sobre o
quadrado branco. Iam contratar casamento, hoje, hoje...
O
transatlântico vai partir. O transatlântico apita. É um gemido rouco, longo,
doloroso, desesperado, irremediável. Debruçado à amurada, Ivo olha o vácuo.
Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O vento do grande mar
desconhecido varre o barco dos suicidas. E todos eles ali vão em silêncio,
enquanto na ponte o fantástico Capitão olha com seus olhos vazios a noite
insondável.
Texto
extraído do livro "Contos" (série paradidática), Ed. Globo - Porto
Alegre - 1978, pág. 13.
Gostei do conto, meio assustador kkkkk.
ResponderExcluirDeu medo kk
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