O
texto abaixo é de autoria de Manuel Bandeira.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: www.releituras.com/mbandeira_bio.asp.
Boa
leitura!
O
ENTERRO DO SINHÔ
J.
B. SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas, era um desses
homens que ainda morrendo da morte mais natural deste mundo dão a todos a
impressão de que morreram de acidente. Zeca Patrocínio, que o adorava e com
quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também:
descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo,
dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doença
era a sua? Parecia um tísico nas últimas. Diziam que tinha muita sífilis.
Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado. Ouvia-se de vez em
quando que o Zeca estava morrendo. Ora em Paris, ora em Todos os Santos,
subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca às
três da madrugada, de smoking, no auge da excitação e da verve. Assim me aconteceu
uma vez, e o que o punha tão excitado naquela ocasião era precisamente a última
marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso Claudionor…
que
pra sustentar família
foi
bancar o estivador…
Me
apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos
pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia
passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava
aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado
naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua
desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde
logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há
de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica,
mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de
toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos
suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um
Jura, com um “beijo puro na catedral do amor”, enfim uma dessas coisas
incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela,
Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais
inteligente e mais heroica… Sinhô!
Ele
era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e
culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em
toda a gente quando levado a um salão.
Vi-o
pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o
“Não posso mais, meu bem, não posso mais”, que havia composto na madrugada
daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia
muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada
um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava
presente, ficou encantado.
Não
faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de
Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de
alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum
botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô
tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio
de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador
para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.
Seu
corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do
Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários… A capelinha branca era
muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente
simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos,
meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um
preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de
fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito
Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas…
Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente
mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele
preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As
flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se
desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos
repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele
choro?). No cinema d’a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava “A Última
Canção” de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da
Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento
e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia
preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele
quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida
da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em
torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência
intérprete de sua alma estoica, sensual, carnavalesca.
Boa crônica.. melhor morte, a natural!
ResponderExcluirQue linda essa crônica! Não sabia muito sobre Sinhô e aqui sempre aprendendo alguma coisa. Amei ler!
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