O
texto abaixo é de autoria de Rachel de Queiroz.
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maiores informações sobre a autora, favor acessar: www.academia.org.br/academicos/rachel-de-queiroz/biografia.
Boa
leitura!
VIAGEM
DE BONDE
Era
o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze. Vinha cheio, mas como diz,
empurrando sempre encaixa. O que provou ser otimismo, porque talvez encaixasse
metade ou um quarto de pessoa magra, e a alentada senhora que se guindou ao
alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto com um bombeiro e outros
amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo. Assim mesmo, e isso prova bem
a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela conseguiu se insinuar, ou antes,
encaixar. E tratava de acomodar-se gingando os ombros e os quadris à direita e
à esquerda, quando o bonde parou em outro poste, o soldado repetiu o tal slogan
do encaixe, e foi subindo – logo quem! – uma baiana dos seus noventa quilos, e
mais uma bolsa que continha o fogareiro, a lata dos doces, o banquinho e o
tabuleiro. E aquela baiana pesava os seus noventa quilos mas era nua, com
licença da palavra, pois com tanta saia engomada e mais os balangandãs, chegava
mesmo era aos cem. E esqueci de dizer que junto com ela ainda vinha uma
cunhãzinha esperta que era um saci, que se insinuou pelas pernas do pessoal e
acabou cavando um lugarzinho sentada, na beirinha do banco, ao lado de uma moça
carregada de embrulhos e que assim mesmo teve o coração de arrumar a garota.
Também o diabo da pequena conquistava qualquer um, com aquele olho preto
enviesado, o riso largo de dente na muda.
Esqueci
de falar que tudo isso se passava no carro-motor. No reboque, atrás, a confusão
parecia maior. Muita gente pendurada entre um carro e outro, e havia um crioulo
de bigode à Stalin, muito distinto, tinha cara de dirigente no Ministério do
Trabalho, que muito sub-repticiamente viajava sobre o pino de ligação entre os
dois carros ou, para dizer melhor, com um pé na sapata do carro-motor e o outro
na sapata do reboque. E quando o condutor aparecia para cobrar a passagem, se
era o condutor da frente ele punha os dois pés no reboque, e se era o condutor
do reboque que vinha com o “faz favor” ele então executava o vice-versa. Sei
que não pagou passagem a nenhum dos dois e devia fazer aquilo por esporte; não
tinha cara de quem precisa se sujar por cinqüenta centavos; esporte, aliás, que
todo o mundo aprova e aprecia, pois quem é que não gosta de ver se tira um
pouco de sangue à Light? E aí o bonde andou um bom pedaço sem que ninguém mais
atacasse a plataforma. A turma que chegava, ocupava-se agora em guarnecer os
balaústres, formando com os pingentes uma superestrutura decorativa. Mas,
alcançando-se o abrigo defronte à Central, quase chegou a haver pânico. Porque
no momento em que a multidão da calçada assaltava o veículo, a baiana quis
descer, e não era façanha somenos desalojar aquela massa da pressão onde se
encastoara, sem falar na pressão de baixo para cima feita pelos que tentavam
subir, contra quem pretendia descer. Mas afinal já a baiana aterrissara na
calçada e o vácuo por ela deixado era instantaneamente ocupado com uma
violência de sorvedouro, o condutor tocara o seu tintim de partida, quando ressoaram
uns gritos agudos cortando o ar abafado. Era o pequeno saci de olhos pretos a
clamar que o povo subindo não a deixara descer. E a tensão geral explodiu em
cólera e ternura, e todo o mundo tocava a campainha, alguns confundiam, puxavam
a corda do marcador de passagens, o condutor vendo isso pôs-se a imprecar em
puro linguajar da Mouraria, uma voz berrava: – já se viu que brutalidade,
impedir a criança de descer; a baiana, em terra, chamava a filha com voz macia,
o motorneiro, para ajudar e mostrar que não tinha nada com aquilo, desandou a
tocar aquela espécie de sino que fica embaixo do pé dele. E enquanto os
passageiros compassivos desembarcavam a garota, um senhor, que vinha em pé no
meio dos bancos, pôs-se a declamar que era assim mesmo, que motorneiro,
condutor e fiscal, em vez de se aliarem com o povo, não passavam de uns lacaios
da Light, mas quando chegasse na hora de pedir aumento de ordenado haviam de
querer que a população ajudasse com aumento nas passagens. O povo é que é
sempre o sacrificado. E o condutor aí se enraiveceu também, e começou a
convidar o homem para a beira da calçada, e o senhor disse que não ia porque
não se metia com estrangeiros, e um engraçadinho deu sinal de partida e o
motorneiro (que já estava por demais chateado) partiu mesmo, deixando o
condutor em terra, vociferando; só foi dar pela falta quando chegou com o carro
bem defronte do sinal; parou então, e enquanto o condutor corria o guarda
começou a apitar, que o bonde tinha parado no meio da luz verde aberta para os
carros em direção contrária; parecia o dia de juízo, o bonde parado, os
automóveis buzinando, o guarda apitando e sacudindo os braços, o pessoal do
bonde rindo que era ver uns demônios. Afinal o bonde partiu, tudo pareceu
acalmar um pouco, mas aquele senhor em pé que xingara os pobres empregados da
Light de lacaios do polvo canadense mostrou que era homem afeito a comícios,
não se dava de uma interrupção tumultuosa. Estava acostumado a falar até em
meio da fuzilaria, assim que ele disse. E que isso tudo acontecia porque o
Governo promete mas não cumpre o dispositivo constitucional – sim, meus
senhores, constitucional! – da mudança da capital da República. Imagine que
delícia o Rio ficar livre de toda a laia dos burocratas, dos automóveis dos
políticos e dos políticos propriamente ditos. Imagine, o Getúlio em Goiás e com
ele a alcatéia dos lobos, os cardumes de tubarões, os rebanhos de carneiros!
Isso aqui ficava mesmo um céu aberto. Pelo menos um milhão de pessoas iria
embora, e que maravilha o Rio com um milhão de vagas nos transportes, um milhão
de vagas nas residências, um milhão de bocas a menos, para comer o nosso mísero
abastecimento! As favelas se acabam automaticamente, o arroz baixa a quatro
cruzeiros! Saem a Câmara e o Senado, e os Ministérios com todas as suas marias
candelárias. Pensando nos ministérios – será apenas um milhão de gente que nos
deixa? Calculando por baixo, talvez saia mais de um milhão! O que virá em muito
boa hora, pois no Rio sobram uns dois milhões!
E
aí o bonde inteiro aplaudiu, cada qual só pensava na vaga a seu lado. E, se
aquele bonde fosse maior, talvez nesse dia, no Rio de Janeiro, houvesse uma
revolução. Talvez o povo do Rio de Janeiro desse ordem de despejo para o seu
Governo, lhe apanhasse os trastes, lhe apontasse a estrada, que é larga e vai
longe. Mas, feliz ou infelizmente, o bonde era pequeno e, apesar de conter
tanta gente, não dava nem para um bochincho. E o Governo, pensando bem, também
é de carne como nós – e só um coração de ferro tem coragem de deixar este Rio,
assim mesmo apertado, superlotado, sem comida, sem transporte, sem luz e sem
água. Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado:
–
Qual, se no céu faltasse água ou luz, por isso os anjos haveriam de se largar
de lá? Céu é céu, de qualquer jeito…
Amei ler esse conto!
ResponderExcluirMuito bom..
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