O
conto abaixo é de autoria de Osman Lins.
Para
saber mais sobre este autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/osman_lins/.
Boa
leitura!
O
VITRAL
Desde
muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando
faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de
alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este
haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão
retivera para sempre os cânticos.
-
Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem.
Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
A
mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da
solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor,
mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao
meio, e levantara-se.
-
Está bem. Você não quer...
(A
voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)
-
Suas tolices, Matilde... Quando é isso?
Como
se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
-
Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...
-
Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um
retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na
véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas
purificara-se da ironia e a repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao
estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um
oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.
Agora,
ali estava o domingo, claro e tépido, mas não com as alegrias sonhadas, sem o
que tudo mais se tornara inexpressivo.
-
Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
-
O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há
tempo.
-
Não. Vou assim mesmo.
Abriu
a porta, saíram. Flutuavam nas raras nuvens brancas, as folhas das aglaias
tinham um brilho seco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma
anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele
gesto.
Seguiram.
Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz
forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão
despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com
uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não
ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
-
Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina.
-
Você é.
A
afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a
aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas
caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua
exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual
Antônio para sempre estaria ausente.
Mas
quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, n~´ao um participante de seu
júbilo, mas a causa mesmo de tudo que naquele instante sentia; e que, sem ele,
o mundo e suas belezas não teriam sentido?
Estas
perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
-
Aproveite - aconselhou ele. Isso passa.
-
Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.
As
duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam
seus passos.
-
Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum
vitral retém a claridade.
Cinco
meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar
sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à rua, abriram um portão,
desapareceram.
Ela
apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava
de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou
subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento
me possua, me ilumine e desapareça - pensava. Eu o vivi. Eu o estou
vivendo".
Sentia
que a luz do sol a trespassava, como um vitral.
Lindo conto, amei ler!
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