O
texto abaixo é de autoria de Chico Anysio.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/chico_anysio/.
Boa
leitura!
O
ENTERRO DO ANÃO
—
O anão morreu! O anão morreu!
O
grito de Felisberto anunciou à rua inteira que acabava de morrer o tipo mais
conhecido de todo o Grajaú.
—
Quem morreu? — perguntou Seu Tadeu, morador de um sobrado, enquanto chupava a
sopa com ruído extraordinário.
—
O anão — disse a mulher.
—
Ah, o Primo Camera? Que Deus o tenha, coitado.
Quando
o velório acabou e o corpo foi levado para a Kombi funerária parada à porta da
casa onde o corpo fora velado, a mulher do anão, um palmo a mais do que ele,
ouviu outra vez as frases de consolo desnecessárias.
—
Deus só leva quem é bom...
—
Você tem que ser forte, Horácia.
Os
homens da funerária, desligados do problema, seguraram o caixão com a maior
facilidade. Era um caixão de menino, só que no negro dos adultos. Pesava o quê?
30 quilos?
Dentro,
vestido de cinza, Primo Camera partia para a última viagem.
Na
rua, Seu Felisberto, com cara muito safada, comentou com Carlos Paulo, num tom
de comediante.
—
Pra que enterrar em caixão? Usava uma caixa de sapatos.
Primo
Camera, em vida, tentara a tevê e o circo, pouso certo dos anões, mas nunca
conseguiu lugar nem numa nem noutra. Seu emprego era: carteiro. Seu nome era
Geraldo, mas ninguém sabia disso, a não ser a Dona Horácia e os filhos Lúcio e
Múcio, esquisitamente grandes, estranhamente normais.
A
anomalia dos pais era de estranheza maior, porque o pai do anão media um metro
e setenta, altura igual à da mãe, que tinha, até, um jeitão de modelo de
desfile, por ser alta e muito fina. Quanto aos pais de Horácia, esses, sim,
tinham problemas. A mãe, não, era crescida, mas o pai, apequenado, tinha até um
monte às costas, onde irritantemente passavam a mão desconhecidos, achando que
isso traz sorte.
O
pai de Horácia, na rua, era chamado de "Berloque de Chaveiro" e, cada
vez que ouvia o apelido, pulava e dava bananas aos que lhe gritavam a alcunha.
—
Eu sou pequeno na altura, mas aqui, ó... aqui, ó... E segurava o imaginado com
a mão pequena, tendo, para isto, que se curvar, pois a mão e braço acabavam um
pouco abaixo do peito.
O
cortejo foi formado.
A
Kombi preta na frente, com Primo Camera, findo. Atrás o carro de Horácia, com
os dois filhos do lado. A seguir, um Pontiac onde iam os pais do morto, chorando
mais que o esperado. Depois, um carro de praça com "Berloque de
Chaveiro" e a esposa, ela chorando, de cara lambuzada. Então, os carros
vários, de parentes afastados, amigos ou conhecidos e a gente toda da rua que
queria acompanhar até o fim o enterro, coisa que achavam gozada.
—
Eu nem sabia que anão morre.
—
Morre. Anão não pode é morar em cobertura.
—
Faz mal?
—
Não; cansa. O dedo não alcança o botão do elevador.
Esta
conversa existia no nono da fila que já andava nas ruas à procura do Caju, onde
Primo Camera seria depositado.
Gente,
na rua, descobria-se à passagem do cortejo. Havia os que isolavam até em caixas
de fósforos, mulheres se persignavam vendo a passagem do morto, meninos paravam
o racha e, por um instante, olhavam, naquele ar inexpressivo de criança, que
não dá valor à morte.
Na
Rua da Cancela a Kombi estancou.
Os
carros (eram 22) pararam atrás, calados, certamente esperando que se abrisse o
sinal.
Mas,
pelos lados do cortejo, seguiam os outros carros, indiferentes ao fato. Sinal
fechado não era.
A
Kombi tinha enguiçado.
O
motorista da Kombi, de terno convenientemente preto, desceu e abriu o motor,
agachando-se sem graça, querendo achar o defeito que lhe punha o carro inútil,
tal qual o Primo Camera, o principal ocupante.
Lúcio,
o filho mais novo do falecido Geraldo (Primo Camera esclarece mais), botou a
cabeça de fora.
—
Algum problema?
—
Parou — respondeu o motorista, num desconsolado abrir de braços.
—
Parou, a Kombi parou — esclareceu Lúcio aos ocupantes do carro: o chofer, a mãe
e Múcio.
Múcio,
da outra janela, virou para o carro de trás e gritou ao motorista que a Kombi
tinha enguiçado.
O
pai do anão abriu a porta e veio à Kombi, enquanto o aviso do enguiço seguia,
de carro em carro, informando aos 22 do problema que surgira.
—
Que foi? — perguntou Ivanildo, o pai do anão.
—
Não sei. Deu um treco aí, a Kombi não anda.
—
E aí?
—
E aí não anda — completou o motorista, já tirando o paletó.
—
Mas tem que andar. Isto é um absurdo. Meu filho está aí dentro. Temos que ir
pro cemitério. O enterro é às cinco.
—
Eu sei, amigão, mas pifou.
Ivanildo,
o pai do anão, passou pelo carro da viúva e enfiou a cabeça pelo vidro
dianteiro.
—
Mandaram uma Kombi de merda, desculpe o termo. Dito isto, voltou ao carro onde
a mulher esperava notícias do acontecido.
—
Quebrou mesmo, Ivanildo?
—
Em vez de mandarem um carro direito, mandam isso. Do carro a seguir, onde
estavam os pais de Horácia, chegaram os ocupantes.
—
Chato, isso.
—
Está vendo? Meu filho, até na morte, tem que passar vexame. Tá certo isso? Não
tá! Tá certo isso? Não tá!
Já
havia gente em volta. Os mais curiosos, pondo-se de pontas de pé, vasculhavam o
interior da Kombi, querendo ver o caixão, descobrir quem era o morto.
—
É um caixãozinho assim — disse um dos que olhavam.
—
Uma criança — falou, triste, outra senhora, transeunte.
—
Só que o caixão é preto — estranhou o descobridor.
O
motorista remexia em coisas do motor. Apertava uma, batia noutra, bulia num
fiozinho, calcava o dedo nas velas, torcia uma coisa aqui, reapertava
parafusos, fazia o que era possível.
—
Vê se pega, Mirandinha... — ordenava ao auxiliar.
A
Kombi gemia um nhém-nhém-nhém-nhém enfadonho, mas do nhém-nhém-nhém não saía.
Dona
Horácia levantou-se e quis ver de perto o caso.
—
Uma anã! — descobriu um mulato.
Risos
pelas calçadas, prantos superados nos carros, suores nas mãos e na testa do
motorista ajoelhado, pedindo perdão à Kombi.
Dona
Horácia, avermelhada, pequeno dedo em riste, avisava irritada, com uma voz de
querubim que diminuía a ênfase.
—
Não vou pagar um centavo. Estou avisando em tempo. Meu dinheiro vocês não vão
ver.
—
Eu tenho culpa, dona? A Kombi enguiçou, né?
—
Não enguiçasse. Nunca vi carro fúnebre enguiçar.
—
Máquina é máquina.
—
Vá à merda.
E
voltou ao seu assento, entre os filhos Lúcio e Múcio, os dois muito
envergonhados.
Uma
voz de um sobrado próximo gritou coisa parecida com "leva de
bicicleta", o que irritou profundamente familiares e amigos.
—
De bicicleta leva a tua mãe, veado! — berrou Seu Belisário, num ato de grande
solidariedade para com o Primo Camera, aliás assim chamado por apelido que
Belisário lhe pusera e do que já se arrependia.
Um
crioulo muito forte, de olho mais pro vermelho, encostou a bicicleta, querendo
dar uma mão ao motorista da Kombi.
—
Já viu o carburador? — aventou, aproximando-se.
—
Eu não manjo nada disso — confessou o motorista.
Os
cheiros de cravo e morte já se faziam sentir.
O
pai do anão fervia.
—
Uma esculhambação! Esse enguiço não existe. Não souberam escolher uma funerária
decente.
A
sogra do anão gemia.
—
Sacanagem... sacanagem... Pobrezinho do meu filho. Tá certo isso? Não tá. Tá
certo isso? não tá.
Já
eram mais de quatro e meia.
—
É melhor ligar pra funerária, pedindo outro carro.
Não
se soube de quem partira a idéia, mas era a solução certa. Do armazém
telefonaram. Quem ligou foi Seu Tadeu, o mesmo que voltou ao grupo formado em
volta da Kombi, muito desesperançado.
—
Vão mandar?
—
Ninguém atende. Esperei chamar 20 vezes. Ninguém atende.
—
É que hoje é feriado — lembrou Mirandinha, ajudante do chofer, já preenchendo
um volante da Loteria Esportiva.
—
E o que é que tem ser feriado? Não se morre em feriado, não? Essa funerária é
uma bosta.
—
Não tenho nada com isso, doutor. Eu sou funcionário.
—
Então, arruma esse carro, em vez de ficar jogando. Desrespeito ao falecido.
Um
guarda desviava o trânsito que passava ao lado. Dos carros vinham piadas.
No
botequim, os amigos, num devorar de batidas, começavam a se desinteressar do
enterro do anão.
—
Esse enterrinho já era.
—
Vamos dar os pêsames aqui e vamos se mandar de leve.
Junto
aos carros que avançavam pelo trânsito desviado, o pai do anão percebeu que
passava gente conhecida.
—
Alá. Tem gente indo embora.
—
Fica calmo, Ivanildo.
—
Estão indo embora. Olha pra trás. Vê quantos carros tem?
A
mulher contou 14, o que significava que 8 já tinham mesmo abandonado o cortejo.
—
O cemitério vai fechar — lembrou alguém de avisar.
Havia
esse perigo. O pai do anão, expedito, achou por bem mandar um carro ao
campo-santo avisar o ocorrido, pedir que esperassem o corpo do Primo Camera.
Gustavinho ofereceu-se, vendo nisso uma ótima saída para não ficar ali,
esperando que a Kombi se resolvesse a andar, ouvindo as muitas chacotas,
participante que era do que achava um desastre.
Começava
a escurecer. Um friozinho incomodava, fazendo com que os acompanhantes
entrassem nos carros, subissem os vidros.
—
Dá um empurrãozinho, pra ver se pega — implorou o motorista.
Horácia,
a anã viúva, foi contra, mas Lúcio e Múcio empurraram, com a ajuda dos poucos
que ainda ficavam. A Kombi corcoveou, ameaçou, enganou, mas nada. No cortejo só
seis carros.
Belisário,
muito sério, tentando evitar o bafo com a mão discretamente cobrindo os lábios,
apresentou-se na janela do carro de Dona Horácia.
—
A senhora vai desculpar, mas eu pego às seis na Light...
Saiu.
—
Tá de porre — disse Múcio pra Lúcio, levando o dedo ao nariz.
O
motorista fez parar um táxi, de onde um português desceu para ajudar.
—
Não xerá a bomba d'água? — perguntou com sotaque de Vizeu.
—
Que água? Isso é uma Kombi. Não usa água, galego.
O
português, irritado, entrou no seu Chevrolet, ainda gritando ao sair:
—
Pega exa Kombi e enfia...
Sumiu
na esquina.
De
repente, nem mais os curiosos. O enguiço da Kombi já dera o que tinha de dar.
Se fosse possível olhar de uma altura de 50 metros, a bordo de um helicóptero,
o que se veria era uma Kombi, com 3 carros parados atrás. Junto à Kombi, o
motorista, olhando, desconsoladamente, o capô aberto, mostrando o motor inútil.
Mirandinha,
o ajudante, cochilava na boleia.
Lúcio
e Múcio, disfarçando, tomavam uma cervejinha no "Bar São Benedito".
Dona
Horácia, só, no carro, rezava com um fervor que merecia a atenção da santa a
quem implorava.
Ivanildo,
o pai do morto, foi à farmácia um instante.
—
Posso usar o banheiro?
Voltou,
explicando à esposa.
—
Esse troço me estragou. Tou com uma caganeira que não está no gibi. Você sabe
como eu sou. Todo aborrecimento me reflete no intestino.
Cinco
e dez acharam o defeito! Falta de gasolina.
O
bujão de plástico despejou dez litros no tanque, e a Kombi roncou o motor.
Gritos e vivas na rua, palmas vinham dos sobrados.
Saiu,
afinal, após um tranco, acompanhada por dois carros, rumo ao cemitério onde os
coveiros, irritados, ao ver descer o caixão guardando Primo Camera, ainda
cometeram o pecado de fazer um comentário.
—
Esperar tanto por isso.
O
enterro correu sem lágrimas e sem a presença de Ivanildo que, à porta do
cemitério, acometido por outra cólica, ficou mesmo no posto de gasolina,
rezando e cagando, cagando e rezando...
Tudo que Chico Anysio escreveu é ótimo! Amei ler!
ResponderExcluir' e segurava o imaginado com a mão pequena" kkkkkkkk muito bom.
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