quinta-feira, 16 de maio de 2019

SESSÃO LEITURA - O ENTERRO DO ANÃO - CHICO ANYSIO

O texto abaixo é de autoria de Chico Anysio.
Para maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/chico_anysio/.
Boa leitura!

O ENTERRO DO ANÃO

— O anão morreu! O anão morreu!
O grito de Felisberto anunciou à rua inteira que acabava de morrer o tipo mais conhecido de todo o Grajaú.
— Quem morreu? — perguntou Seu Tadeu, morador de um sobrado, enquanto chupava a sopa com ruído extraordinário.
— O anão — disse a mulher.
— Ah, o Primo Camera? Que Deus o tenha, coitado.
Quando o velório acabou e o corpo foi levado para a Kombi funerária parada à porta da casa onde o corpo fora velado, a mulher do anão, um palmo a mais do que ele, ouviu outra vez as frases de consolo desnecessárias.
— Deus só leva quem é bom...
— Você tem que ser forte, Horácia.
Os homens da funerária, desligados do problema, seguraram o caixão com a maior facilidade. Era um caixão de menino, só que no negro dos adultos. Pesava o quê? 30 quilos?
Dentro, vestido de cinza, Primo Camera partia para a última viagem.
Na rua, Seu Felisberto, com cara muito safada, comentou com Carlos Paulo, num tom de comediante.
— Pra que enterrar em caixão? Usava uma caixa de sapatos.
Primo Camera, em vida, tentara a tevê e o circo, pouso certo dos anões, mas nunca conseguiu lugar nem numa nem noutra. Seu emprego era: carteiro. Seu nome era Geraldo, mas ninguém sabia disso, a não ser a Dona Horácia e os filhos Lúcio e Múcio, esquisitamente grandes, estranhamente normais.
A anomalia dos pais era de estranheza maior, porque o pai do anão media um metro e setenta, altura igual à da mãe, que tinha, até, um jeitão de modelo de desfile, por ser alta e muito fina. Quanto aos pais de Horácia, esses, sim, tinham problemas. A mãe, não, era crescida, mas o pai, apequenado, tinha até um monte às costas, onde irritantemente passavam a mão desconhecidos, achando que isso traz sorte.
O pai de Horácia, na rua, era chamado de "Berloque de Chaveiro" e, cada vez que ouvia o apelido, pulava e dava bananas aos que lhe gritavam a alcunha.
— Eu sou pequeno na altura, mas aqui, ó... aqui, ó... E segurava o imaginado com a mão pequena, tendo, para isto, que se curvar, pois a mão e braço acabavam um pouco abaixo do peito.
O cortejo foi formado.
A Kombi preta na frente, com Primo Camera, findo. Atrás o carro de Horácia, com os dois filhos do lado. A seguir, um Pontiac onde iam os pais do morto, chorando mais que o esperado. Depois, um carro de praça com "Berloque de Chaveiro" e a esposa, ela chorando, de cara lambuzada. Então, os carros vários, de parentes afastados, amigos ou conhecidos e a gente toda da rua que queria acompanhar até o fim o enterro, coisa que achavam gozada.
— Eu nem sabia que anão morre.
— Morre. Anão não pode é morar em cobertura.
— Faz mal?
— Não; cansa. O dedo não alcança o botão do elevador.
Esta conversa existia no nono da fila que já andava nas ruas à procura do Caju, onde Primo Camera seria depositado.
Gente, na rua, descobria-se à passagem do cortejo. Havia os que isolavam até em caixas de fósforos, mulheres se persignavam vendo a passagem do morto, meninos paravam o racha e, por um instante, olhavam, naquele ar inexpressivo de criança, que não dá valor à morte.
Na Rua da Cancela a Kombi estancou.
Os carros (eram 22) pararam atrás, calados, certamente esperando que se abrisse o sinal.
Mas, pelos lados do cortejo, seguiam os outros carros, indiferentes ao fato. Sinal fechado não era.
A Kombi tinha enguiçado.
O motorista da Kombi, de terno convenientemente preto, desceu e abriu o motor, agachando-se sem graça, querendo achar o defeito que lhe punha o carro inútil, tal qual o Primo Camera, o principal ocupante.
Lúcio, o filho mais novo do falecido Geraldo (Primo Camera esclarece mais), botou a cabeça de fora.
— Algum problema?
— Parou — respondeu o motorista, num desconsolado abrir de braços.
— Parou, a Kombi parou — esclareceu Lúcio aos ocupantes do carro: o chofer, a mãe e Múcio.
Múcio, da outra janela, virou para o carro de trás e gritou ao motorista que a Kombi tinha enguiçado.
O pai do anão abriu a porta e veio à Kombi, enquanto o aviso do enguiço seguia, de carro em carro, informando aos 22 do problema que surgira.
— Que foi? — perguntou Ivanildo, o pai do anão.
— Não sei. Deu um treco aí, a Kombi não anda.
— E aí?
— E aí não anda — completou o motorista, já tirando o paletó.
— Mas tem que andar. Isto é um absurdo. Meu filho está aí dentro. Temos que ir pro cemitério. O enterro é às cinco.
— Eu sei, amigão, mas pifou.
Ivanildo, o pai do anão, passou pelo carro da viúva e enfiou a cabeça pelo vidro dianteiro.
— Mandaram uma Kombi de merda, desculpe o termo. Dito isto, voltou ao carro onde a mulher esperava notícias do acontecido.
— Quebrou mesmo, Ivanildo?
— Em vez de mandarem um carro direito, mandam isso. Do carro a seguir, onde estavam os pais de Horácia, chegaram os ocupantes.
— Chato, isso.
— Está vendo? Meu filho, até na morte, tem que passar vexame. Tá certo isso? Não tá! Tá certo isso? Não tá!
Já havia gente em volta. Os mais curiosos, pondo-se de pontas de pé, vasculhavam o interior da Kombi, querendo ver o caixão, descobrir quem era o morto.
— É um caixãozinho assim — disse um dos que olhavam.
— Uma criança — falou, triste, outra senhora, transeunte.
— Só que o caixão é preto — estranhou o descobridor.
O motorista remexia em coisas do motor. Apertava uma, batia noutra, bulia num fiozinho, calcava o dedo nas velas, torcia uma coisa aqui, reapertava parafusos, fazia o que era possível.
— Vê se pega, Mirandinha... — ordenava ao auxiliar.
A Kombi gemia um nhém-nhém-nhém-nhém enfadonho, mas do nhém-nhém-nhém não saía.
Dona Horácia levantou-se e quis ver de perto o caso.
— Uma anã! — descobriu um mulato.
Risos pelas calçadas, prantos superados nos carros, suores nas mãos e na testa do motorista ajoelhado, pedindo perdão à Kombi.
Dona Horácia, avermelhada, pequeno dedo em riste, avisava irritada, com uma voz de querubim que diminuía a ênfase.
— Não vou pagar um centavo. Estou avisando em tempo. Meu dinheiro vocês não vão ver.
— Eu tenho culpa, dona? A Kombi enguiçou, né?
— Não enguiçasse. Nunca vi carro fúnebre enguiçar.
— Máquina é máquina.
— Vá à merda.
E voltou ao seu assento, entre os filhos Lúcio e Múcio, os dois muito envergonhados.
Uma voz de um sobrado próximo gritou coisa parecida com "leva de bicicleta", o que irritou profundamente familiares e amigos.
— De bicicleta leva a tua mãe, veado! — berrou Seu Belisário, num ato de grande solidariedade para com o Primo Camera, aliás assim chamado por apelido que Belisário lhe pusera e do que já se arrependia.
Um crioulo muito forte, de olho mais pro vermelho, encostou a bicicleta, querendo dar uma mão ao motorista da Kombi.
— Já viu o carburador? — aventou, aproximando-se.
— Eu não manjo nada disso — confessou o motorista.
Os cheiros de cravo e morte já se faziam sentir.
O pai do anão fervia.
— Uma esculhambação! Esse enguiço não existe. Não souberam escolher uma funerária decente.
A sogra do anão gemia.
— Sacanagem... sacanagem... Pobrezinho do meu filho. Tá certo isso? Não tá. Tá certo isso? não tá.
Já eram mais de quatro e meia.
— É melhor ligar pra funerária, pedindo outro carro.
Não se soube de quem partira a idéia, mas era a solução certa. Do armazém telefonaram. Quem ligou foi Seu Tadeu, o mesmo que voltou ao grupo formado em volta da Kombi, muito desesperançado.
— Vão mandar?
— Ninguém atende. Esperei chamar 20 vezes. Ninguém atende.
— É que hoje é feriado — lembrou Mirandinha, ajudante do chofer, já preenchendo um volante da Loteria Esportiva.
— E o que é que tem ser feriado? Não se morre em feriado, não? Essa funerária é uma bosta.
— Não tenho nada com isso, doutor. Eu sou funcionário.
— Então, arruma esse carro, em vez de ficar jogando. Desrespeito ao falecido.
Um guarda desviava o trânsito que passava ao lado. Dos carros vinham piadas.
No botequim, os amigos, num devorar de batidas, começavam a se desinteressar do enterro do anão.
— Esse enterrinho já era.
— Vamos dar os pêsames aqui e vamos se mandar de leve.
Junto aos carros que avançavam pelo trânsito desviado, o pai do anão percebeu que passava gente conhecida.
— Alá. Tem gente indo embora.
— Fica calmo, Ivanildo.
— Estão indo embora. Olha pra trás. Vê quantos carros tem?
A mulher contou 14, o que significava que 8 já tinham mesmo abandonado o cortejo.
— O cemitério vai fechar — lembrou alguém de avisar.
Havia esse perigo. O pai do anão, expedito, achou por bem mandar um carro ao campo-santo avisar o ocorrido, pedir que esperassem o corpo do Primo Camera. Gustavinho ofereceu-se, vendo nisso uma ótima saída para não ficar ali, esperando que a Kombi se resolvesse a andar, ouvindo as muitas chacotas, participante que era do que achava um desastre.
Começava a escurecer. Um friozinho incomodava, fazendo com que os acompanhantes entrassem nos carros, subissem os vidros.
— Dá um empurrãozinho, pra ver se pega — implorou o motorista.
Horácia, a anã viúva, foi contra, mas Lúcio e Múcio empurraram, com a ajuda dos poucos que ainda ficavam. A Kombi corcoveou, ameaçou, enganou, mas nada. No cortejo só seis carros.
Belisário, muito sério, tentando evitar o bafo com a mão discretamente cobrindo os lábios, apresentou-se na janela do carro de Dona Horácia.
— A senhora vai desculpar, mas eu pego às seis na Light...
Saiu.
— Tá de porre — disse Múcio pra Lúcio, levando o dedo ao nariz.
O motorista fez parar um táxi, de onde um português desceu para ajudar.
— Não xerá a bomba d'água? — perguntou com sotaque de Vizeu.
— Que água? Isso é uma Kombi. Não usa água, galego.
O português, irritado, entrou no seu Chevrolet, ainda gritando ao sair:
— Pega exa Kombi e enfia...
Sumiu na esquina.
De repente, nem mais os curiosos. O enguiço da Kombi já dera o que tinha de dar. Se fosse possível olhar de uma altura de 50 metros, a bordo de um helicóptero, o que se veria era uma Kombi, com 3 carros parados atrás. Junto à Kombi, o motorista, olhando, desconsoladamente, o capô aberto, mostrando o motor inútil.
Mirandinha, o ajudante, cochilava na boleia.
Lúcio e Múcio, disfarçando, tomavam uma cervejinha no "Bar São Benedito".
Dona Horácia, só, no carro, rezava com um fervor que merecia a atenção da santa a quem implorava.
Ivanildo, o pai do morto, foi à farmácia um instante.
— Posso usar o banheiro?
Voltou, explicando à esposa.
— Esse troço me estragou. Tou com uma caganeira que não está no gibi. Você sabe como eu sou. Todo aborrecimento me reflete no intestino.
Cinco e dez acharam o defeito! Falta de gasolina.
O bujão de plástico despejou dez litros no tanque, e a Kombi roncou o motor. Gritos e vivas na rua, palmas vinham dos sobrados.
Saiu, afinal, após um tranco, acompanhada por dois carros, rumo ao cemitério onde os coveiros, irritados, ao ver descer o caixão guardando Primo Camera, ainda cometeram o pecado de fazer um comentário.
— Esperar tanto por isso.
O enterro correu sem lágrimas e sem a presença de Ivanildo que, à porta do cemitério, acometido por outra cólica, ficou mesmo no posto de gasolina, rezando e cagando, cagando e rezando...

2 comentários:

  1. Tudo que Chico Anysio escreveu é ótimo! Amei ler!

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  2. ' e segurava o imaginado com a mão pequena" kkkkkkkk muito bom.

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