O
texto abaixo é de autoria de Artur Azevedo.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: www.academia.org.br/academicos/artur-azevedo/biografia.
Boa
leitura!
UMA
APOSTA
Se
o Simplício Gomes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças
brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria idéia de um
desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro
qualquer diríamos: “Ele gostava da Dudu”; tratando-se, porém, do Simplício
Gomes, empregaremos esta expressão menos familiar: “Ele amava Edviges.”
O
seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se
compadecia com os costumes de hoje.
Começava
por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele
nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas
simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.
Estava
bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família, mas era tão
feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o
casamento lhe parecia desproporcionado.
Ele
não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o
desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação
se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela
solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu
vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio
soldo e montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu
sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício
Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia,
achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como
era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus
favores simples atenções de família.
O
caso é que o Simplício Gomes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e
nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:
–
Aposto que hoje chove!
–
Que idéia! o dia está bonito!
–
Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda certeza!
–
Não temos!
–
Façamos uma aposta!
–
Valeu! se chover eu perco uma caixa de charutos.
–
E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre Dame e cobiçou tanto.
–
Quem lhe disse que cobicei?
–
Ora, esses olhos não me enganam…
No
dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A
velha costumava dizer com muita ingenuidade:
–
Você faz mal em apostar, Simplício! E muito caipora, perde sempre, e então, em
se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!
Conquanto
não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela
idéia de que quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado… um noivo… um
marido e efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se
realizassem.
Dudu
impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a
porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente
escrevendo-lhe graças à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois
de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do
namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente
consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já
havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que
pôde, os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se
com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.
A
velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade
do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em
quebra-esquinas.
Foram
desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se
Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa
categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco
genioso.
O
Simplício, que não tinha o altruísmo heróico de Cirano de Bergerac, não
avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o
Bandeira pediu a mão de Dudu; e começou a freqüentar a casa.
O
coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos
vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre… Dudu, que tudo
compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos; mas a velha nem mesmo assim
desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.
Entretanto,
o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto
era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem.
O
noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma
arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.
Uma
bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes,
afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira
levantou-se dizendo:
–
Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
–
Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho, replicou Dudu, sem se levantar do
canapé.
–
Já lhe disse que tenho que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não
contrariar as minhas vontades! Olhe que depois de casado, hei de sair quantas
vezes quiser sem dar satisfações a ninguém!
–
Bom; não precisa zangar-se…
–
Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a
senhora, mas não perder a liberdade!
–
Faz bem. Adeus. Até quando?
–
Até amanhã ou depois.
O
Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Gomes, e
saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.
Dudu
ficou sentada no canapé, olhando para o chão.
O
Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.
Ficaram
dez minutos sem dizer nada um ao outro.
Afinal
Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo
esplêndido, e murmurou:
–
Vamos ter chuva.
–
Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
–
Apostemos!
–
Pois apostemos! Eu perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
–
Eu… perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!
E
Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.
(O
Século, 9 de julho de 1907. In Histórias brejeiras, 1962.)
Muito bonito, amei ler!
ResponderExcluirMuito bonito!
ResponderExcluir