O RELÓGIO
Em 1942, morávamos meus pais e eu em um quarto de pensão.
Próximo à sala de refeições, havia um pequeno aposento em constante penumbra, ocupado por um solteirão e sua mãe, enferma há muitos anos; ela pouco se levantava da cama e quando o fazia, era por minutos e amparada pelo filho.
Eu costumava olhar com olhos arregalados, pelo canto da porta entreaberta, até que me mandassem sair, para aquela senhora deitada, imóvel, de camisola branca, pernas cobertas por um lençol, pele alva e olhos fixos no teto.
Era a expressão da morte que, aos quatro anos, eu visitava por uma fresta de porta.
No ano seguinte, nos mudamos da pensão no Engenho Novo para uma casa de vila, na Tijuca.
Aos domingos, Antonio de Faria, o filho daquela senhora do quarto de cortinas cerradas, o amigo que meu pai deixara na pensão, vinha nos visitar.
Era uma pessoa austera, pouco ria e se impunha uma rígida disciplina que deixava transparecer em atitudes e gestos, parte de uma rotina metódica.
Era um homem simples, de salário mínimo que trabalhava, das 8 às 16 horas, em um laboratório manipulando cápsulas para distúrbios gástricos, acondicionadas em caixinhas de papelão verde. Era o único empregado, fora o entregador.
À tarde, no fim de mais uma jornada, retirava o jaleco branco, ajeitava a gravata e o colete; conferia a hora no Omega de bolso, corrente de prata, e assinava o livro de ponto. Só depois colocava o paletó.
Em 1948, voltamos para o Engenho Novo, para uma casa bem próxima à pensão.
A caminho do trabalho, todas as manhãs, ele me levava para o curso de admissão ao Colégio Militar.
Quando descíamos do bonde, eu perguntava as horas. Ele tirava o relógio de prata do bolso do colete e respondia: 7 horas e 43 minutos...ainda estamos com tempo.
Eu ria sempre do gesto, da mesma resposta e ele, austero, me dizia que devíamos ser precisos com as horas.
- Nada de 4 horas da tarde ;deve-se dizer, 16 horas.
Certa ocasião, percebendo que eu já perguntava por perguntar, ele acariciou o Omega, seu olhar ficou distante e me disse que aquele era o único bem material que possuía.
Mais tarde, quando ganhei meu primeiro relógio de pulso, ele me recomendou dar corda sempre à mesma hora; dizia que era o segredo para um bom funcionamento.
Quando tinha que acertar o relógio, recorria ao Faria; nestes momentos, ele esboçava um pequeno sorriso, retirava o Omega do bolso do colete e, orgulhoso, com precisão, informava até os segundos.
Com ele aprendi a engraxar os sapatos todos os dias porque, conforme dizia, um homem com sapatos sujos não vale nada.
E, da melhor forma, os anos foram passando.
Veio a Copa do Mundo. Uruguai, campeão.
Chegou a primeira namorada e com ela, o primeiro beijo.
Voltou Getúlio, pelo voto popular. Veio a comoção nacional com o seu suicídio.
Numa tarde de sábado, aconteceu: a mãe do Faria, D. Adelaide, levantou da cama e andou pelo corredor da pensão amparando-se na parede; depois pelo quintal, mas a hora exata do milagre não foi registrada porque o Omega e seu dono estavam ausentes.
Todas as tardes, D. Adelaide ia à igreja; depois à nossa casa, onde ficava esperando o filho. Lia o jornal e, com minha mãe, escutava no rádio a novela das 18 horas. Às vezes jantavam em nossa casa.
D.Adelaide viveu mais três anos; não soube de Brasília, nem da fundação do Estado da Guanabara.
A pensão fechou, foi demolida e em seu lugar surgiu uma retífica de motores.
Meu pai tentou, em vão, convencer o Faria a vir morar conosco. Ele optou pela tia viúva, irmã mais velha de D. Adelaide.
Meu pai conseguiu, pelo menos, que ele passasse os fins de semana em nossa casa.
Na era Jango, mas desde Juscelino, o salário mínimo dava sinais de fortes perdas de compra Caminhando com dificuldade, Faria dava sinais de muito cansaço.
Assim foi que, por três fins de semana, ele não apareceu. Meu pai comunicou-se com o irmão dele que foi encontrá-lo, na casa da tia, queimando de febre em cima de uma cama e muito debilitado.
No dia seguinte à remoção para um hospital, antevendo sua morte, Faria disse que tinha umas economias na caderneta da Caixa e ia deixá-las para mim; meu pai não aceitou, porém não pode recusar o relógio Omega de bolso que ele guardara para me dar, conforme suas palavras, quando fosse o momento.
Dois dias depois, ele faleceu; meu pai estava ao seu lado.
No enterro: o irmão, meus pais e eu. Fazia frio e chovia fino.
Passaram-se quarenta anos.
Olho pela vidraça da janela. Olho para o tempo.
As folhas dos caquizeiros estão douradas.
Abro a caixa de madeira e dou corda no Omega de bolso, de prata, com corrente de prata.
Faz frio e chove fino.
Autor
Elysio Lugarinho Neto
Mari, que linda história, se bem que um pouco triste! Que bonito, uma pessoa marcar tanto assim a vida de um jovem e ser lembrada quarenta anos depois! Emocionante! Bjs.
ResponderExcluirMaria, que bom que gostou, tbm achei muito triste! bjs.
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