A
crônica abaixo é da autoria de Rubens Ewald Filho.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rubens_Ewald_Filho.
Boa
leitura!
VIAGEM
SENTIMENTAL A SANTOS
Sempre
achei que nascer de frente para o mar faz uma diferença. A gente é mais aberto,
mais livre, acostumado desde criança a furar onda, respeitar o oceano, conviver
com o sol aberto. A gente tem cheiro de maresia, de iodo, de areia molhada.
Santista,
pisciano, eu fui jogado numa piscina mal aprendi a ser gente. Meu pai era
presidente do Clube Saldanha da Gama que ficava na Ponta da Praia, diante do
Canal da Barra e em sua gestão construiu a piscina que ainda hoje leva o nome
dele. Todas as minhas lembranças se referem a mar, água, o sacrifício de
acordar cedo todas manhãs para treinar, faça sol ou chuva (não havia
aquecimento de piscina na época). Mais tarde, nadar no oceano, pular do
trampolim velho (hoje demolido), atravessar o canal a nado (por vezes fugindo
dos navios que passavam), indo explorar do outro lado (lá ficava o lado pouco
conhecido de Guarujá), ou pegar a baleeira para ir até as praias da Pouca
Farinha, do Góes, ou o fechadíssimo Clube de Pesca.
E
também participar de travessias muitas vezes nadando com os botos ou se
desviando das águas vivas. E não do lixo e entulhos como atualmente. Santos
ainda hoje é uma cidade muito especial, muito boa para se viver. Na minha época
de garoto ainda era melhor. Rica por causa do café e do porto, cosmopolita
(muitos estrangeiros), repleta de clubes sociais ou esportivos tinha também uma
inesperada vida cultural (não é a toa que de lá estava Patricia Galvão e de lá
saíram Cacilda Becker, Plínio Marcos, e mais tarde Bete Mendes, Ney Latorraca,
Jandira Martini, Nuno Leal Maia e etc).
Era
possível se andar de bicicleta por toda a cidade, plana, sem colinas era
perfeita para se andar, caminhar, mesmo que fosse pela areia (santista tem
orgulho de poder caminhar a beira mar, nem se ofende quando invejosos dizem que
ela é cimentada!). Minha família morava ao lado do trilho do trem da Sorocabana
e de fronte ao ponto do Bonde Dez. Quase todos eles eram abertos, com estribos
(o fechado estilo Camarão seria mais tarde importado de São Paulo), arejados e
confortáveis. Tínhamos fazenda de bananas no litoral sul (parte em Mongaguá,
parte em Itanhaém), um lugar repleto de córregos e cachoeiras, onde para
consumo próprio tínhamos algum gado, criação de porcos, galinhas. De tempos em
tempos, chegavam latas de gordura animal, de água fresca de nascente e
naturalmente bananas.
Acho
que devo a saúde à natação e às bananas. De tudo que é tipo e jeito, mas
principalmente nanica ou branca (a banana maçã vinha sempre empedrada),
amassada com aveia, transformada em bananada ou torta ou cozida ou assada.
Cresci à custa de tanto potássio. Como boa família brasileira éramos descendentes
de portugueses, italianos, alemães, russos (e por mãe espanhol e belga). A mesa
sempre foi farta. No Natal, o avô exigia Pernil de Porco, mas o forte era o
polvo (a provençal/vinagrete e/ou como risoto) e o macarrão da família (um
raviolone recheado de ricota ralada, passas sem caroço, salsa picada, ovo
inteiro para dar liga e um pouco de sal) com massa feita em casa o que
arregimenta até hoje um esforço coletivo.
Para
uma criança, Santos era uma cidade de mil delícias. Lembro ainda do sorvete de
São Vicente, a bananinha seca da Leoneza, a queijadinha e o biscoito de
polvinho da fábrica Praiano, o frappé de Coco do Yara, a torta Napoleão e o
chantilly da primeira confeitaria de frente para a Praia, a Joinville. E também
da primeira lanchonete de cachorro quente que se instalou na Praça
Independência (chamava-se apenas Hot Dog's) e marcou época. Do mate que
tomávamos com o Paraná na praia do Canal 3 (tudo por lá e referenciado pelos
números do Canais). E para refrescar as raspadinhas (gelo picado com dose de
groselha ou outro tipo de licor). Meu pai era um bom garfo e desde cedo íamos
ao Jangadeiro na Ponta da Praia (que era o máximo em peixes e fruto do mar, até
mesmo a sopa de tartaruga hoje nada ecológica), na primeira cantina da cidade
(que foi a Liliana), na famosa Caldeirada de Peixes no Marreiro, no filé
Chateaubriand do Atlântico (do Hotel do mesmo nome), o filé até hoje famoso do
Chopp Gonzaga onde você come no balcão.
Só
mais tarde é que fui descobrir o centro da cidade e seus restaurantes e bares
tradicionais: O Chope do Nicanor e seu pãozinho com aliche. O Café Carioca, ao
lado da Prefeitura e seus famosos pasteis, o Café Paulista, na Rua XV, centro
de negócios e que inventou um creme batido de abacate com vinho do porto. O
tradicional Almeida que fica até hoje no fim da Ana Costa, perto do terminal
dos bondes, o único que fica aberto a noite toda e é conhecida por seu caldo
verde. E saudades do requintado Chave de Ouro, em plena Boca, com madeira de
Mogno e seus reservados a "la francesa".
Mas
o maior impacto foi mesmo causado por uma revolução gastronômica na cidade,
quando chegou o Don Fabrizio da Família Tattini que ficava no Edifício Lutécia,
ao lado da escola que frequentava: o Ateneu Progresso Brasileiro. Foi ali que
eduquei meu gosto, desenvolvi meu paladar e criei as bases para toda minha
experiência culinária. Foi revolucionário na introdução dos
"réchauds" (os garçons é que concluíam o prato na sua frente) e me
cativou para sempre com a sobremesa favorita até pelo nome, que me fazia
quebrar a cabeça, o chamado sorvete Quente! Como era possível isso?? Acho que
qualquer um, é plasmado pela infância e juventude. Passamos a vida muitas vezes
correndo atrás daquilo que nunca tivemos ou perdemos ou gostaríamos de ter.
Quando
sinto o cheiro de maresia, o perfume da compota de goiaba de minha mãe, o show
da comida em chamas do Don Fabrizio, as lembranças todas voltam e me aquecem. E
parto em busca não do tempo perdido, mas do tempo vivido. Quando nem sabia que
eu era feliz.
Uma linda crônica, amei ler!
ResponderExcluirBoa, apesar de longa rs
ResponderExcluir