O
texto abaixo é de autoria de Rubem Braga.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/rubem_braga/.
Boa
leitura!
CHEGOU
O OUTONO
Não
consigo me lembrar exatamente o dia em que o outono começou no Rio de Janeiro
neste 1935. Antes de começar na folhinha ele começou na Rua Marquês de
Abrantes. Talvez no dia 12 de março. Sei que estava com Miguel em um reboque do
bonde Praia Vermelha. Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia
Vermelha, mas sempre fui simpatizante. É o bonde dos soldados do Exército e dos
estudantes de Medicina.
Raras
mulatas no reboque; liberdade de colocar os pés e mesmo esticar as pernas sobre
o banco da frente. Os condutores são amenos. Fatigaram-se naturalmente de
advertir os soldados e estudantes; quando acontece alguma coisa eles suspiram e
tocam o bonde. Também os loucos mansos viajam ali, rumo do hospício. Nunca viajou
naquele bonde um empregado da City Improvements Company: Praia Vermelha não tem
esgotos. Oh, a City! Assim mesmo se vive na Praia Vermelha. Essenciais são os
esgotos da alma. Nossa pobre alma inesgotável! Mesmo depois do corpo dar com o
rabo na cerca e parar no buraco do chão para ficar podre, ela, segundo consta,
fica esvoaçando pra cá, pra lá. Umas vão ouvir Francesca da Rimini declamar
versos de Dante, outras preferem a harpa de Santa Cecília. A maioria vai para o
Purgatório. Outras perambulam pelas sessões espíritas, outras à meia-noite
puxam o vosso pé, outras no firmamento viram estrelinhas. Os soldados do
Exército não podem olhar as estrelas: lembram-se dos generais. Lá no céu tem
três estrelas, todas três em carreirinha. Uma é minha, outra é sua. O cantor
tem pena da que vai ficar sozinha. Que faremos, oh meu grande e velho amor, da
estrela disponível? Que ela fique sendo propriedade das almas errantes. Nossas
pobres almas erradas!
Eu
ia no reboque, e o reboque tem vantagens e desvantagens. Vantagem é poder
saltar ou subir de qualquer lado, e também a melhor ventilação. Desvantagem é o
encosto reduzido. Além disso os vossos joelhos podem tocar o corpo da pessoa
que vai no banco da frente; e isso tanto pode ser doce vantagem Como triste
desvantagem. Eu havia tomado o bonde na Praça José de Alencar; e quando
entramos na Rua Marquês de Abrantes, rumo de Botafogo, o outono invadiu o
reboque. Invadiu e bateu no lado esquerdo de minha cara sob a forma de uma
folha seca. Atrás dessa folha veio um vento, e era o vento do outono. Muitos
passageiros do bonde suavam.
No
Rio de Janeiro faz tanto calor que depois que acaba o calor a população
continua a suar gratuitamente e por força do hábito durante quatro ou cinco
semanas ainda.
Percebi
com uma rapidez espantosa que o outono havia chegado. Mas eu não tinha relógio,
nem Miguel. Tentei espiar as horas no interior de um botequim, nada
conseguindo. Olhei para o lado. Ao lado estava um homem decentemente vestido,
com cara de possuidor de relógio.
–
O senhor pode ter a gentileza de me dar as horas?
Ele
espantou-se um pouco e, embora sem nenhum ar gentil, me deu as horas: 13:48.
Agradeci e murmurei: “chegou o outono”. Ele deve ter ouvido essa frase tão
lapidar, mas aparentemente não ficou comovido. Era um homem simples e tudo o
que esperava era que o bonde chegasse a um determinado poste.
Chegara
o outono. Vinha talvez do mar e, passando pelo nosso reboque, dirigia-se
apressadamente ao centro da cidade, ainda ocupado pelo verão. Ele não vinha
soluçando les sanglois longs des violons de Verlaine, vinha com tosse, na
quaresma da cidade gripada.
As
folhas secas davam pulinhos ao longo da sarjeta; e o vento era quase frio,
quase morno, na Rua Marquês de Abrantes. E as folhas eram amarelas, e meu
coração soluçava, e o bonde roncava.
Passamos
diante de um edifício de apartamentos cuja construção está paralisada no mínimo
desde 1930. Era iminente a entrada em Botafogo; penso que o resto da viagem não
interessa ao grosso público. O próprio começo da viagem creio que também não
interessou. Que bem me importa. O necessário é que todos saibam que chegou o
outono. Chegou às 13:48 horas, na Rua Marquês de Abrantes, e continua em vigor.
Em vista do que, ponhamo-nos melancólicos.
Rio
de Janeiro, 1935.
Linda crônica, amei ler!
ResponderExcluir