O
texto abaixo é de autoria de Monteiro Lobato.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/monteiro_lobato/.
Boa
leitura!
FATIA
DE VIDA
Não
era homem querido, o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa
razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido é força pensar como
toda gente.
“Toda
gente!”
Moloch
social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos
mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice.
“É
um esquisitão.”
Inútil
dizer mais. O homem marcado vê-se logo posto de través e à margem, como o
leproso. Torna-se um indesejável. É um suspeito. Haja meio e eliminam-no do
grêmio como a um corpo estranho, de malsão convívio.
Assombramo-nos
ao recordar os crimes de grupo que enchem a história — Santo Ofício, guerras,
matanças religiosas. Transportados à época vemos que o progredir humano não
passa da consolidação das vitórias do “esquisitão” sobre “Toda gente”.
“Toda
gente” não tolerava dúvidas sobre a fixidez da Terra. Vem um esquisitão e diz:
A Terra move-se em redor do Sol. “Toda gente”, por intermédio de seus
representantes legais, agarra o velho pelo gasnete e força-o a retratar-se.
—
Renega a heresia, infame, ou asso-te já na fogueira!
Galileu
baixou a cabeça encanecida e abjurou. E a Terra, que começara a girar em torno
ao Sol, teve que mudar de política e imobilizar-se por muito tempo ainda. Hoje
roda livremente. O monstro deu-lhe essa liberdade…
Como
se vê, apesar da guerra que “Toda gente” move aos esquisitões as ideias destes
influenciam e aos poucos transformam a mentalidade do Moloch. No começo o
monstro encarcera, esquarteja, empala, sufoca. Depois volta atrás, medita e
murmura: “Ele tinha razão!”, e adere com a maior inocência.
“Toda
gente” tem hoje a caridade como dogma infalível, e por esse motivo encarou com
assombro o doutor Bonifácio quando o esquisitão sorriu a uma frase nédia e lisa
do cônego Eusébio. O cônego Eusébio, conspícuo representante legal do Moloch,
dissera no tom solene dos que monopolizam a verdade sobre o orbe:
—
Não há virtude mais sublime. Só ela tem forças para resolver a questão social.
Aquele movimento belíssimo durante a epidemia da gripe em São Paulo — que
réplica de escachar o espírito que nega! Todos à urna, governos, matronas,
meninas, associações, todos empenhados em lenir o sofrimento dos pobres, como
que a derramar Deus nos corações!…
O
doutor Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe,
do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.
—
Sorri-se o herege? — interpelou o padre. — Nega até a caridade?
—
Não nego — respondeu mansamente o filósofo —, porque não nego nem afirmo coisa
nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho
meu lugar na plateia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio —
sorrio para não chorar…
—
Seja mais claro.
—
Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz dessa
cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti — e,
repito, sorri para não chorar…
Depois
de breve pausa de interrogativa expectação o doutor Bonifácio principiou.
—
Isaura, a minha lavadeira…
As
anedotas têm força de ímã. Vários curiosos aproximaram-se e ficaram a ouvir.
—
Minha lavadeira, como todas as lavadeiras, era uma pobre mulher de incomparável
heroísmo, desse que os épicos não cantam, o Estado não recompensa e ninguém
sequer observa. Para mim, entretanto, é a forma nobre por excelência do
heroísmo — a luta silenciosa contra a miséria.
—
Que esquisitice!
—
Porque é heroísmo ininterrupto, sem tréguas — continuou o doutor Bonifácio —,
sem momento de repouso e, além disso, sem nenhuma esperança de qualquer espécie
de paga.
—
Vamos ao caso…
—
Viúva com quatro filhos, a heroica Isaura matava-se no trabalho incessante.
Aquelas mãos vermelhas e curtidas… Aqueles braços requeimados…
Que
máquinas! Era do movimento deles que vinha o sustento da casa. Parassem,
repousassem — e a Fome, esquálida megera que ronda os bairros pobres,
meter-se-ia portas adentro…
—
Romantismo… “Esquálida megera”…
—
No primeiro sábado da Grande Gripe, Isaura, minha pontualíssima lavadeira, não
me apareceu como de costume com a sua bandeja de roupa lavada. Em lugar dela veio
uma vizinha.
“—
A Isaura? — perguntei-lhe.
“—
Anda às voltas com os filhos. Deu lá a ‘espanhola’ e a pobre está que está numa
roda-viva.
“—
Hei de ir vê-la, coitada…
“—
É caridade, senhor. A pobre é bem capaz de endoidecer…
“Não
fui. Impediu-mo a própria gripe, cujos primeiros sintomas nesse mesmo dia
comecei a sentir. Passei de molho três semanas e quando me levantei, e me
preparava para ir ver Isaura, eis que ela me reaparece em pessoa.
“Em
que estado, porém! Envelhecera vinte anos, tinha os cabelos brancos, os olhos
no fundo, o ar de uma coisa vencida pelo destino. E tossia.
“—
Sente-se e conte-me tudo.
“Sentou-se
e, sem derramar uma só lágrima, pois já as chorara todas, narrou-me a sua
tragédia.
“Tinha
em casa uma filha de dezoito anos, que trabalhava na costura; outra de
dezesseis, que a ajudava na lavagem; um filho de quinze, entregador de roupa, e
mais uma netinha de seis anos, órfã.
“A
gripe apanhou-os a todos e a ela também. Mas a pobre criatura não soube disso,
não o notou. Como perceber que estava doente se suas faculdades eram poucas
para atentar nos filhos? E lá sarou de pé, sem um remédio. E como ela também
sarariam os filhos todos se…”
O
doutor Bonifácio voltou-se para o cônego.
—…
se a caridade não interviesse…
—
Já sei onde quer bater — exclamou o cônego. — Mas cumpre notar que quando falo
de caridade não me refiro à assistência pública, nem sequer à filantropia. Falo
da caridade sentimento, da caridade virtude cristã — concluiu baforando o
cigarro, alegre, com ar de quem cortou vazas.
O
doutor Bonifácio prosseguiu:
—…
se a caridade sentimento não sobreviesse por intermédio do coração bondoso de
uma vizinha. Esta vizinha, compadecida daquele angustioso transe, telefonou a
um posto médico narrando o caso e pedindo assistência. A ambulância veio
justamente durante a ausência da Isaura, que saíra a compras, e levou-lhe todos
os filhos para o Hospital da Imigração.
“Corriam
boatos apavorantes a respeito deste hospital improvisado, onde — murmuravam —
só se recebiam os pobres bem pobres e o tratamento era o que devia ser, porque
pobre bem pobre não é bem gente. De modo que nada apavorava tanto o povinho
miúdo como ir para a Imigração.
“Assim,
ao voltar da rua e saber do acontecido Isaura estarreceu. Foi como se o próprio
inferno houvesse aberto as goelas e engolido os adorados doentes. Quem zelaria
por eles? Sozinhas no meio de desconhecidos, de enfermeiros mercenários, que
seria das pobres crianças?
“Correu
para aqueles lados, inquirindo às tontas: ‘A Imigração? Onde fica a
Imigração?’. ‘É por aqui.’ ‘Dobre à direita.’ ‘É lá naquela casa grande’,
informavam-na pelo caminho.
“Chegou.
Bateu. Esperou à porta um tempo enorme. Entravam e saíam pessoas apressadas,
médicos, ajudantes, homens de avental. ‘Não é comigo’, diziam. ‘Espere.’ ‘Bata
outra vez.’
“Afinal,
uma alma caridosa…”
—
Ca-ri-do-sa — repetiu o cônego, sorrindo.
—…
uma alma caridosa apareceu e deu-lhe a informação pedida. Os filhos estavam lá,
mais a netinha. A de dezesseis anos, porém, atacada de tifo.
“—
Tifo?! — exclamou, alanceada, a pobre mãe. “A alma caridosa enterrou mais fundo
o punhal: “— Sim, tifo, e do bravo.
“A
mulher já não ouvia. De olhos esbugalhados, como fora de si, repetia a esmo a
palavra tremenda — ‘Tifo!’ Conhecia-o muito bem. Fora a doença malvada que lhe
arrebatara o marido.
“—
Quero vê-la, quero ver minha filha!…
“—
Impossível! “Isaura lutou, insistiu. “Inútil.
“A
porta fechou-se com chave e a pobre mulher se viu despejada na rua. “Andou
muito tempo à toa, como ébria, sem destino. ‘Olha a louca!’, gritavam os
moleques. E parecia mesmo, se não louca, pelo menos aluada. “Súbito Isaura
resolveu-se. Havia de ver os filhos. Era mãe. ‘São meus, o mundo nada tem com
eles. Eu os tive, eu os criei, só eu os quero no mundo. São tudo para mim. Como
gentes estranhas me roubam assim os filhos, me impedem que eu, mãe, os veja?
Nem ver, apenas ver? Oh, isso é demais.’
“Havia
de vê-los.
“Galvanizada
pela resolução, Isaura correu a implorar socorro de um homem influente cuja
roupa lavava.
“O
influente deu-lhe uma carta. ‘Vá com isto que as portas se abrem.’ “Nova
corrida ao hospital. Nova espera angustiosa. Por fim a mesma alma caridosa…”
O
doutor Bonifácio entreparou, olhando para o sacerdote. E, como desta vez ele
silenciasse, prosseguiu:
—
Por fim a alma caridosa reapareceu e disse à desolada mãe:
“—
Posso ir lá dentro saber de seus filhos, mas deixá-la entrar, não! “— E a carta?
“—
Inútil. É expressamente proibido.
“—
Pois dê-me notícias de meus filhos, então.
“A
alma caridosa foi saber dos doentinhos e a triste mãe, embrulhada em seu xale
humilde, ficou a um canto, esperando. Minutos depois reaparecia a alma
caridosa.
“—
Olhe, sua filha morreu.
“—
Morr…
“E
os olhos da miseranda mãe exorbitaram, seus dedos se crisparam…
“—
Morreu!… Mas qual delas?
“—
Uma delas.
“—
Mas qual? Qual?…
“Já
eram gritos lancinantes que lhe saíam da boca. A alma caridosa fechou a porta e
sumiu-se…
“O
infinito desespero de Isaura nessa noite em casa, a revolver-se na cama, a
remorder o travesseiro… ‘Qual? Qual das minhas filhas morreu?…’ A dor
requintava-se ante a incerteza. ‘Seria a Inesinha? Seria a Marietinha?’ E o
cérebro lhe estalava na ânsia de adivinhar. ‘Qual delas, meu Deus?’
“São
dores que a palavra não diz. Imagina-as a imaginação de cada um.
Adiante.
“No
outro dia a mulher correu de novo ao hospital. Repete-se a mesma cena — a
ansiosa espera de sempre, os pedidos com lágrimas a saltarem dos olhos. O
ambiente é o mesmo — de indiferença geral. Só não há indiferença na alma
caridosa, que reaparece e pergunta:
“—
Que quer de novo, santinha?
“—
Meus filhos… saber…
“—
Seus filhos? Não estão mais aqui. Foram removidos para o hospital do
Isolamento, os dois.
“—
Os dois?!…
“—
Os dois, sim, porque a mais pequena também morreu.
“—
A minha netinha morreu?!…
“—
Coragem, minha velha, a vida é isto mesmo.
“E
a porta fechou-se pela última vez.”
As
três ou quatro pessoas reunidas em torno do doutor Bonifácio ansiavam pelo
final da história. “E depois?”, era a sugestão de todos os olhos.
O
doutor Bonifácio prosseguiu:
—
Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois
filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto,
cadavérico, e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e
a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível
naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra
enfermeira — a Fome. Continuaram a viver, sem saber como, por instinto — num
desvario, numa alucinação…
“Da
última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:
“—
Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem nada lhes teria
acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa
desgraça. É um perigo ser muito bom…”
O
doutor Bonifácio calou-se. O cônego não achou que fosse caso de comentar. A roda
dissolveu-se em silêncio.
Que lindo conto! Emocionante. Ameo ler!
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